Não sei se ando meio distraído, mas o fato é que ainda não ouvi, este ano, a exasperante canção interpretada pela cantora Simone, “Então é Natal”.
Talvez, o espírito natalino tenha sido postergado em razão da urgência mercadológica de uma Copa do Mundo tipo micareta, fora de época, e esta seja a causa de não ter havido oportunidade da massiva execução do tema natalino inibidor da ação da fluoxetina em mentes depressivas.
Se as antigas musiquinhas acompanhadas por harpas paraguaias já agiam como um objeto perfurocortante que atinge seletivamente os nervos, a partir de 1995 esta aborrecida versão de Happy Xmas de John Lennon, passou a deprimir mais do que despertar o mal explicado espírito natalino.
O espírito natalino é aquele clima de fraternidade e amor gratuito capaz de reunir um bolsonarista e um lulista à mesma mesa para a divisão de um panetone engastado de uvas passa.
O espírito de natal independe da religião que se confesse, pois prescinde da figura cujo nascimento deveria ser lembrado, o Messias do cristianismo. O “clima” se tornou mais importante do que seu fato gerador.
As comemorações natalinas não nasceram com o cristianismo primevo. Das recomendações que Cristo deixou para seus seguidores, estava a de cultivarem o hábito de sentarem-se à mesa, onde a única divisão aceitável seria a das refeições. Esses momentos se transformaram em um dos sete sacramentos católicos – a eucaristia ou comunhão – e pela doutrina protestante se tornou a “santa ceia”. Embora sejam cerimônias observadas periodicamente durante o ano, são marcadamente pascais.
Não há nos escritos neotestamentários nenhuma indicação para que o advento do Salvador fosse guardado como se faz com a Páscoa, por exemplo. A Páscoa cristã relembra a morte e promessa de ressurreição de Jesus – extensível a todos nós – naquela ceia anterior à Sua traição e execução. Segundo os Evangelhos, as duas previsões se cumpriram. O Natal do Senhor passou a ser celebrado apenas no século IV como forma de cristianizar as festas pagãs romanas.
Então, por que razão o clima de Natal desperta sentimentos tão magnânimos como amor, perdão e fraternidade, e a Páscoa não?
Presumo que seja pelo fato de, ocidentais, valorizarmos mais os nascimentos do que as mortes, mesmo com a esperança de ressurreição. Somos hedonistas e, ao que nos parece, é melhor viver do que morrer, mesmo que esta tese contrarie fundamentos do cristianismo.
O ensino transmitido por Jesus ao não incentivar comemorações de Seu nascimento, mas de lembrarmos Sua morte, talvez fosse o de que nascer só cobrará valor se o existir redundar no cumprimento da missão de cada um. Ele nasceu para morrer por uma causa e, ao expirar torturado, seu último fôlego Lhe permitiu dizer: “Está consumado” (sua missão, seu propósito). Nascer é como começamos, mas é como terminamos que conta. Ou, como diz o Eclesiastes: terminar algo é melhor do que começar.
Que o espírito de Natal nos permita fazer um balancete das nossas vidas e, oxalá, estejamos todos caminhando para o alvo.