As memórias mais distantes que trago, ativadas um gerenciador chamado hipocampo como quer a neurociência, têm a ver com casas onde vivi e objetos que as compunham. Não vou convencer os neurocientistas, mas acredito que as memórias estão indelével e inamovivelmente impressas na alma, parte do ser que independe das funções orgânicas. Não explicaria de outra forma o fato de pessoas que sofrem de alguma patologia mental como o mal de Alzheimer, por exemplo, recordarem-se de rostos e lugares afastados no tempo, mas não do que lhes sucede no agora imediato, dias de sua decrepitude física e mental.
Tenho lampejos de olores, cores, sons, vozes e formas de momentos dos quais não tenho total consciência, mas que me remetem em autêntico déjà vu ao passado afetivo. Dá-se como uma viagem alucinatória, instantânea, tão fugaz e tão capaz de me permitir analisar fatos passados que me curo de certas impressões da psiqueimatura.
Lá estão as janelas de uma folha só – sem vidraças – das casinhas caiadas de branco e azul, patinadas pelo tempo, as cadeiras de palha, as mesas de madeira nobre, já tão experientes em histórias antepassadas. Naqueles lugares estão os primeiros sofás recobertos de plástico vulgar, os fogões a lenha, os pequenos espelhos de molduras cor de laranja em que nos espiávamos e o pai se afeitava. Lá é o lugar dos colchões moles, desestruturados, em cima dos quais a gurizada sonhava com dias melhores; lá ficou o primeiro fogão a gás, a geladeira vermelha, a TV com cheiro de nova.
Quando nossa mãe, recuperando-se de uma depressão não diagnosticada – fruto da solidão dos ninhos vazios – decidiu retomar a vida, achou que deveria comprar novos sofás. Quando partiu, os deixou na sala a nos lembrar que a vida continua mesmo quando alguns se vão. Os móveis e as casas ficam. É neles que se impregnam as nossas memórias afetivas.
Na última semana rodei pelas partes baixas da cidade para um inventário mental da mais recente cheia do rio Caí. O que vi pelas ruas atingidas pelas águas era desolador. Montanhas de móveis que até a poucos dias guarneciam e enfeitavam casas, dispostos ao longo das ruas: destruídos, encharcados, inchados, inaproveitáveis. Uma escavadeira com sua concha dentuça, impiedosamente os catava e os arremessava nas carrocerias de caminhões que os levava para destinação final: o lixo. Não digo um cenário de guerra, mas de tragédia igual.
Então, enxerguei através do que agora é entulho. Ali estavam dispostos ao sol e à curiosidade pública, histórias de famílias, de lares, de pessoas que se alimentam de esperança. Ali estava o dinheirinho contado de prestações intermináveis. Ali estavam os sofás sobre os quais se discutia o projeto da família para o próximo ano; roupeiros que guardavam os looks de domingo (que também se perderam). Ali, tragadas pela escavadeira, estavam as mesas onde se compartia o pão e os colchões onde guerreiros e guerreiras descansavam os corpos moídos pela faina e compartilhavam de intimidade.
Estoicamente, já não buscam culpados. Preparam-se para a próxima. Não há culpados imediatos.
É a vida mesma: tão cheia de coisinhas do nosso afeto, que as guardamos na alma; tão cruel que não se cansa de levar nossas coisinhas.