Naquela segunda-feira, saltei cedo. Embora fosse uma manhã já de outono, o calor não se fez de rogado e fingia estar gozando ainda do seu tempo regulamentar. As estações climáticas já não querem mais cumprir calendários; têm vontade própria. Quando bem entendem que devem, dão-se todas no mesmo dia. Ou invadem, umas às outras, ignorando que Tom Jobim já disse que as águas de março devem fechar o verão.
Deslocava-me do bairro Santo Antônio em direção ao Bela Vista. Ali tem uma oficina que deixa um para-choque arranhado em estado de novo. Ouvia as notícias no rádio sem lhes pagar nenhuma atenção, mesmerizado pelos matizes da luz solar filtrada entre árvores, e pela grande sombra que o morro São João projeta para oeste àquela hora, sobre a avenida Ernesto Popp, e por olores de acácia e eucalipto, que pensei serem impossíveis em uma manhã de dia útil. Essas nuanças se percebem em domingos e feriados.
“Que evento cósmico, fortuito, acidental, organizara tamanha maravilha? Ou que Criador fora capaz de, pelo poder criativo de seu verbo, gerar tanta beleza natural?A felicidade é completa sem esses elementos?” Entreguei-me à excogitação filosófica profunda, sem desviar os olhos do trânsito nem dos transeuntes.
Foi quando fiz a conversão à esquerda para tomar a Balduíno Rambo que os vi. Eram três ou quatro meninos, felizes e vestidos para jogar bola. Desciam pela calçada, já no finzinho da Balduíno, alcançando a Ernesto Popp. Meninos não andam em fila indiana. Caminham tão próximos uns dos outros que parecem ocupar o mesmo espaço. Riam. Olhei-lhes as faces, por um átimo. Tomei-me de inveja. Eu acordara cedo para tratar de coisa de adulto, levar o carro para a oficina. Aqueles gurizinhos de doze ou treze anos, despertaram naquela luminosa segunda-feira com o único propósito de serem crianças, ou seja, felizes. Eu fui um deles em um remoto dia. Avisava-se a mãe de que iríamos ali, jogar bola. Quase nunca íamos só jogar bola. Depois do campinho, o caminho para casa nunca era uma reta. Sempre haveria um arvoredo de bergamotas, um rio, uma esquina onde adiávamos a separação dos amigos. Tomei-me de ciúme.
Como podem existir ainda meninos como aquele que eu fora, e meus amigos, que saíam de casa cedinho para jogar bola ou fazer qualquer das artes que não poderiam ser cometidas diante dos olhos zelosos dos pais? Cogitei que eles estivessem indo para aula de educação física, pois, era uma segunda-feira. Iam para o treino da escolinha de futebol da qual faziam parte.
Um daqueles meninos não voltou para casa.
Quando li a notícia da morte por afogamento de um pré-adolescente de 13 anos, pelas circunstâncias, hora e local, percebi imediatamente que se tratava de um daqueles meninos com quem cruzei às oito horas de uma manhã de segunda-feira ensolarada e perfumada. Nada ameniza a dor pela tragédia. Julgamentos precipitados, muito menos. A busca social por culpados quando não há culpados, só faz aumentar a dor daqueles que têm o direito de sofrer pela perda pura, pela ausência do seu querido.
Um dia, espero, a humanidade perderemos o vício de buscar explicações para cada fato da vida, incluindo a morte, dando vazão à imperiosa necessidade de imputarmos culpa a alguém, quando podemos nos dispensar dela.
Que inveja daqueles meninos.
Um dia, me prometo, sairei às oito da manhã para jogar bola. E se não voltar, não me culpem.
Às vezes, os meninos não voltam.