Não sei ao certo se a política do cancelamento, própria da era digital, já atingiu os acampamentos farroupilhas, mas temo que a gauderiada use de método, digamos, mais tradicional para marcar a ferro os nascidos na Província de São Pedro que não cultuam a mitologia gaúcha. É quase um crime de lesa-querência não se vestir bombachas e botas e um lenço branco ou vermelho na garganta na semana do vinte de setembro, quando gaúchos se ufanam de terem nascido neste berço de homens fortes, aguerridos e bravos. Lembram da guerra pretensamente separatista que buscava fundar a República Rio-Grandense, talvez por falta de quem coroar imperador ou rei.
Para o jornalista, historiador e escritor Juremir Machado da Silva, “a chamada Revolução Farroupilha foi uma rebelião de fazendeiros e de militares insatisfeitos com o poder central”. Autor do livro “História Regional da Infâmia” (L&PM Editores, 2010), Juremir tornou-se persona non-grata do movimento tradicionalista,como um traidor da pátria, mesmo tendo a paciência de pesquisar mais de quinze mil documentos originais da época da guerra que durou dez anos, a fim de confrontá-los com o mito tradicionalista gaúcho.
Leciona o Juremir, despertando sentimentos de haters, que a chamada Revolução Farroupilha“ foi uma revolução de proprietários, atendia exclusivamente aos interesses da elite agrária da época, nada mais do que isso. Era um grupo de fazendeiros descontente com a política tributária do império e um grupo de militares que estava aqui porque tinha se envolvido nos episódios da abdicação do Imperador D. Pedro I, e foram colocados na “geladeira”. Conforme o autor, ao se juntar a insatisfação dos militares mandados para o Sul com a insatisfação dos fazendeiros, gerou-se um episódio que inicialmente era para ser passageiro, como forma de fazer pressão. Ninguém entre os revoltosos esperava que o movimento – que não era republicano no início – fosse durar 10 anos. Como só acontece com a História, começou de uma maneira e foi tomando outro rumo. Segue o Juremir: “Tornou-se republicano, precisou incorporar escravos nas tropas militares, prometer liberdade, sem ser abolicionista”.
Criticar a história oficial, entretanto, à luz de evidências documentais, não anula os sentimentos gentílicos que nutrem os gaúchos pela sua terra. São coisas diferentes para Machado da Silva:“Uma é a admiração, um culto ao imaginário agropastoril rio-grandense…a admiração pelo homem a cavalo, pela vida do campo, pelas lidas campeiras. Outra coisa é a Revolução Farroupilha que se liga com isso na medida em que se foi buscar o mito fundador, que se foi buscar um acontecimento épico para irrigar a participação dos movimentos de hoje. Então, eu diria, são duas coisas: a vontade de se reunir em acampamento, de cultuar o ideal, tudo isso eu acho útil socialmente, é o que Michel Maffesoli chamaria de tribalização do mito, pertencer a alguma coisa, vibrar em comum, se sentirem em grupo, ter rituais, as pessoas precisam disso, funciona. Agora o mito fundador não é exatamente o que as pessoas acham que ele é, o que ele foi. A Revolução Farroupilha historicamente não é o que muitos dos tradicionalistas dizem que ela foi”.
É como comparar a música do Baitaca com o Hino Rio-Grandense. Mais façanhas tem para contar quem foi criado em rancho de barro e capim do que quem faz a ímpia e injusta guerra. Voto com o relator.