Das singulares mercês

Sempre que se tenta justificar a endêmica corrupção brasileira, diz-se que a maldição alcançou as terrasbrasilis junto com as caravelas de Cabral,revelando-se na epístola que o escrivão Pero Vaz de Caminha enviou ao rei Dom Manuel de Portugal. Ao final da missiva em que descreve o “achamento” do Brasil (descobrimento desconsidera os nativos aqui existentes), Caminha solicitara um favorzinho ao rei, o que configuraria o primeiro caso de nepotismo tabajara: uma sinecura, um empreguinho público para um sobrinho. Em tempos em que tudo é verificável, uma olhada mais acurada sobre o manuscrito do Pero mostra tratar-se de uma pós-verdade, ou seja, uma versão que convém mais que os fatos objetivos para a formação da opinião pública. Da grande epístola de Caminha solicitando uma boquinha para o sobrinho, a sabedoria popular cunhou a figura do “pistolão”, aquele figurão influente que recomenda pessoas para empregos.

Então, sempre que se fala em nepotismo, vem o exemplo do Caminha para provar que a corrupção brasileira é de nascença. O escrivão português se tornou a primeira vítima de fakenews retroativa.
A singular mercê solicitada por Caminha ao rei, na verdade, era em favor da repatriação do genro Jorge de Osório, desterrado pela coroa portuguesa na ilha de São Tomé, na África. Nepotismo não era. Mas, era um favorzinho em paga do qual Caminha empenhava a promessa de que “vossa alteza há de ser de mim muito bem servida”.

Em recente enfrentamento com a colega Camila de Oliveira (REP), da tribuna, o vereador Felipe Kinn da Silva (MDB) insinuou que a vereadora estivesse envolvida com nepotismo cruzado. Kinn é o presidente da Comissão de Ética da Câmara de Vereadores e se recolheu ao silêncio e à inação depois de jogar farinha no ventilador.

Fac-símiles de documentos publicados em grupos de redes sociais comprovaram que não só Camila tinha um irmão em cargo comissionado na Administração, como o presidente da Câmara, Juarez Oliveira (PTB), e Ana Paula Machado (PTB) tinham genro e cunhado, respectivamente.

O prefeito, Gustavo Zanatta, em defesa dos princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade, eficiência e isonomia, demitiu os parentes dos vereadores.

De fato, não se tratou de nepotismo cruzado ou impróprio. O nepotismo cruzado pressupõe um ajuste para designações ou nomeações recíprocas, em que o agente público nomeia pessoa ligada a outro agente público, enquanto a segunda autoridade nomeia pessoa ligada por vínculos de parentesco ao primeiro agente. Esta troquita de favores pode ocorrer dentro do mesmo poder ou órgão ou, ainda, entre poderes e órgãos distintos. Se não houver reciprocidade nas nomeações, não há que falar em nepotismo cruzado.

Entretanto, a lei não esgota os casos em que pode haver interesses escondidos por detrás de designações ou nomeações em cargos comissionados. E onde a lei não alcança, apela-se para a ética, aquela ponta de torturante band-aid no calcanhar que aparece fora do sapato.

Gustavo Zanatta deixou o legalismo de lado e propugnou pela ética. Há mais que se guardar do que enumera a lei e súmulas vinculantes.

Na mesma linha, indicações de vereadores para ocupação de cargos na Administração em troca de apoio parlamentar.

Nepotismo não é. Mas, é um favorzinho em pagado qual o vereador se empenha com a promessa de que “vossa alteza há de ser de mim muito bem servida”.

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