Da eternidade das coisas que passam

No poema de Jorge Luís Borges (1899 – 1986) “Fundación Mítica de Buenos Aires”, de 1929, o maior escritor argentino analisa o surgimento da cidade portenha contrastando as culturas dos europeus que “… vinieron a fundarmelapatria”,e a culturalocal. Ao fim, Borges acredita que Buenos Aires nunca teve início. Sempre existiu.

“A mí se me hacecuento que empezó Buenos Aires:
La juzgotan eterna como elagua y el aire.”
É como quando nascemos e crescemos em uma mesma casa, e bairro, e cidade. Ali está guardada a vida toda, memórias, vivências e experiências, asmais ternas e as mais dolorosas, também. Isto se parece com eternidade. É o que permanecesólido, quando tudo está se liquefazendo à nossa volta.

Houve um tempo em que aparelhos de televisão não guarneciam todos os lares. Lá em casa, só pudemos adquirir um em 1973. Era um televisor de imagens em preto e branco, de tela cheia de chuviscos e fantasmas das mais variadasescalasectoplasmáticas. Podia-se, entretanto, distinguir-se os semblantes e os sotaques dos artistas.

Antes disso, fazíamos parte da plateia chamada de ‘televizinhos’, os que assistiam TV nas salasdaqueles que, mesmo tomando endereços tão diferentes quanto longínquos, ainda são nossos vizinhos (a estória aquela, da eternidade!).

E foi assim, em salas que não eram da família, que tivemos os primeiros contatos com a tecnologia da época, a mídia que parecia insuperável. Os espetáculos televisivos, de produção quase artesanal, nos permitiam conhecer gentes de lugares que só sabíamos pelas aulas de geografia. As novelas traziam os sotaques paulista, primeiro, e o carioca, depois, para dentro das casas dos brasileiros periféricos. E, assim, tornávamos íntimos de artistas de quem fazíamos questão de conhecer os nomes e as histórias, ainda que eles nunca viessem a nos particularizar. Somos uma massa informe e anônima.Assim são as idolatrias.

Quando a Globo começou a mastigar e deglutir a concorrência, lançou em 1970, a épica novela Irmãos Coragem. Foi a primeira produção global a ter uma cidade cenográfica. João Coragem era o personagem principal e foi interpretado por Tarcísio Meira.

Dois anos depois, 1972, a novela ‘O Primeiro Amor’ trouxe uma dupla de personagens secundários na trama, Shazan e Xerife, de tanto sucessoque tornou-se o primeiro caso de personagens saídos de novela a ganhar um seriado próprio. A dupla era interpretada por Paulo José (Shazan) e Flávio Migliaccio (Xerife), morto no ano passado.

Nos últimos 50 anos, as carreiras destes monstros da televisão, teatro e cinema, de performances ecléticas, se consolidaram. Para artistas tão importantes quanto eles, contracenar com Tarcisão e Paulo José, era subir um patamar na carreira. Eles são aquela unanimidade não-burra, a exceção à regra rodrigueana.

Assim, estes talentosos e carismáticos artistas, entre tantos outros, estiveram sempre em cartaz durante a minha existência. Como as marcas que trago comigo, indeléveis, deixadas por todos os relacionamentosafetivos e sociais. Estão lá, subjacentes. Basta um estímulo para virem à consciência.
Estes ícones da dramaturgia nacional vão-se embora no momento em que a televisão sofre um dos mais fatais golpes tecnológicos.

A televisão está migrando inapelavelmente para o consumo on-demand, e o excesso de oferta e novidadesvai gerar ídolos de pés de barro, aqueles que não suportam uma estação de chuvas.
Não haverá mais artistas que atravessem 60 anos, sólidos, a permear as existências de tanta gente, a datar vidas conforme as épocas de suas atuaçõesinesquecíveis.

A mim parece conto que morreram Tarcísio e Paulo José; os julgo tão eternos quanto a água e o ar.

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