Não era sem choro e ranger de dentes que acordávamos cedo aos domingos para irmos à Escola Dominical. Nosso pai, um ex-alcoólatra que, por achar o vício invencível, tentara o suicídio como forma de aliviar os sofrimentos da família, havia se convertido pela pregação evangélica. Naqueles tempos, sabia-se do que se tratava quando se falava em “conversão”. A vida do meu pai se trocou e revelou o verdadeiro homem que ele era.
Como por milagre – ou por milagre – enojou-se da bebida e a qualidade de vida mental da família tornou-se outra, a despeito de que nem todas as necessidades materiais puderam ser supridas imediatamente.
Para o pai, as coisas eram bem simples. Ele sabia em que acreditava, por que aquilo em que passou a crer, lhe arrancou do vício que lhe alienava o controle da personalidade e o fazia sofrer e machucar aos que mais amava. Essa era a verdade.
Então, nada mais justo do que buscar proporcionar aos filhos viverem essa verdade. Os mais velhos, entre a adolescência e a madurez, já não se deixavam dirigir, mas os mais novos precisaram sacrificar seus domingos matinais para aprenderem a Palavra de Deus. A alegria dos assovios despertadores e as coceguinhas no sovaco e nas costelas com que o velho procurava nos acordar, eram respondidas com muxoxos irritados de quem só tinha o domingo para acordar mais tarde e previa o enfado de uma aula bíblica. Bons tempos, aqueles! – lamentamos hoje.
A vida era feita de certezas. Pela transformação interior por que passara, sem haver nenhuma ação comissiva própria, o pai tinha a infalível receita para a felicidade humana, afastando qualquer possibilidade de erro: aceitar a verdade do Evangelho, pois a verdade é que liberta, o que ele mesmo testemunhara. Esta “verdade” convencionou-se escrever nos Evangelhos com a inicial maiúscula – Verdade – pois é incorporada – digamos singelamente assim – pelo próprio Deus único. “Verdade” que encarnou – agora literalmente – no Filho de Deus.
A partir da conversão do seu Quintino, toda sua cosmogonia, cosmovisão, seu código ético,– ainda que ele não tivesse consciência de que assim se chamavam –eram subsidiados pela fé em um só Deus, criador e mantenedor de todas as coisas, que criou a humanidade para o bem e não para o mal. E o mal é pecado. E que se peca mais interiormente do que externamente. E que Deus conhece os nossos pensamentos e sabe se são bons ou maus. Que a teatralização do bem não vale, antes é pecado. Que só o bem desejado no interior do homem é o que conta, ainda que – às vezes – não consigamos levá-lo a efeito. E que, no final, vamos necessariamente prestar contas de atos, palavras e pensamentos ao Criador.
Quando, em 1997, passaria por grave cirurgia toráxica a qual poderia não resistir, o pai se despediu de mim e, suspirando, orou: Pai, te entrego o meu espírito! Não foi dessa vez que foi recolhido pelo Criador, vivendo mais 13 anos, até os noventa. O fato ilustra o quanto a “verdade” era sólida para o pai. Entregou o espírito, arrependendo-se de possíveis pecadilhos que tenham ficado escondidinhos em algum escaninho da alma.
Os dias são maus; são tantas as verdades que vivemos que, não raro, são antagônicas. Tudo é líquido, tudo se conforma às maiorias – ou minorias. O que é sólido se derrete como gelo.
Talvez se diga de meu pai que era um crente fundamentalista. Mas ele sabia em que cria.
A verdade não é líquida. Nós é que estamos nos liquefazendo.