A desídia criminosa do Governo. As providências do Governo de muito pouco valeram até agora. Continuamos entregues à Divina Providência. E os casos fatais aumentam. O Rio é um vasto hospital. Não há médicos, não há remédios.
Estamos em 1918, não em 2021. A chamada gripe espanhola chegara ao Brasil a bordo do navio inglês Demerara, vindo de Portugal. As 50 milhões de mortes em todo o mundo passaram das manchetes de jornais da época para os livros de história.
Quando as primeiras notícias sobre a gripe chegaram ao Brasil, foram tratadas “com descaso e em tom pilhérico, até mesmo em tom de pseudocientificidade ilustrando um estranho sentimento de imunidade face à doença” (Goulart, 2005p. 102). De forma geral, os textos apontam que os governantes no Brasil minimizaram a doença, propalando que era apenas uma gripe comum, passageira e benigna.
Em Porto Alegre, um trecho do jornal Echo do Sul, do dia 30 de outubro de 1918, sobre a paisagem da cidade: O aspecto da cidade é desolador. A maioria do comércio fechado, como a maioria das farmácias, das padarias e casas de comestíveis. Muitos desses estabelecimentos são servidos por mulheres que ali estão pelos seus maridos convalescentes… Pelas ruas cruza de instante a instante ou um enterro ou um caixão vazio na cabeça de um preto cambaleante e que vai para esta ou aquela casa para dali sair daí a pouco com um cadáver de gripado. Os que têm acompanhamento, e esse não raro reduzido, seguem muito adiante, enquanto as pessoas do préstito, taciturnas, cabisbaixas, a pé, vão pelo passeio. É desolador. Quase todas as casas têm as portas semicerradas. (Echo do Sul, citado por Torres, 2009, p. 97)
Num cenário de morte em massa, todos os elementos dos ritos de passagens foram suspensos e foi abolida, nas palavras de Delumeau (2009), a morte personalizada. A pandemia desmascara a morte, diz o autor, sendo a tal ponto “coletiva, anônima e repulsiva” quando se perde as “liturgias seculares que até ali lhe conferiam nas provações, dignidade, segurança e identidade” (Delumeau, 2009, p. 181). O autor destaca que a interrupção brutal das atividades cotidianas, o silêncio das cidades, a solidão imposta aos doentes, o anonimato da morte e a suspensão dos ritos coletivos impossibilitam a concepção de projeto futuros e as pessoas viram-se presas ao cotidiano em franca desestruturação, abalando indivíduos e coletividades que atravessam esse tipo de catástrofe.
Na pandemia da Covid-19, os ritos estão também restritos ou
suspensos. Observamos enterros em massa, covas abertas por escavadeiras, caixões empilhados e a despersonalização que acompanha as atualizações epidemiológicas.
Para Karl Marx, “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. É a tragédia, agora. A “pandemia esquecida”, como se passou a chamar a gripe espanhola, cobra agora um preço muito alto, se considerarmos que a ciência e a tecnologia sanitária evoluiu nos últimos 100 anos o que não acontecera em milênios de pestes e pandemias.
Talvez, o problema não esteja na ciência médica, capaz, hoje, de evoluir de práticas agressivas como a lobotomia, por exemplo, para o desenvolvimento de medicamentos mais eficazes e mais seguros para as doenças mentais.
O problema está em que a Ciência e a tecnologia ainda se permitem subjugar pela política dos negacionistas e pela política da terra-arrasada, para quem quanto pior, melhor. Não importam as pessoas mais que os projetos de poder.
Assim, agora como em 1918.