A cidade onde envelheço

A Cidade Onde Envelheço, da diretora brasileira Marília Rocha, é um longa que trata da história de duas amigas portuguesas que escolhem o Brasil – Belo Horizonte mais precisamente – para viverem o resto de suas vidas. Querem envelhecer ali. Não será fácil. O choque cultural e o estranhamento tornarão o filme interessante ao discutir as opções de vida que escolhemos.
Do filme, tomo o título.

Cresci em uma localidade chamada Passo da Cria. À época, os cerca de seis quilômetros que nos separavam do centro da cidade pareciam invencíveis. Morávamos para fora. No interior. Somente 40 anos depois o asfalto alcançou aquele pedaço de chão. Como uma coisa chama outra coisa, um campus universitário ali se instalou. Antes que o progresso ali nos encontrasse, buscamos melhor qualidade de vida do outro lado da cidade. Os irmãos mais velhos passaram à atividade laboral e tornou-se possível o pagamento de aluguel para melhores condições. Os primos se foram antes, para a capital.

O onipresente e intransponível morro São João era o muro alto a separar duas fases de uma mesma vida. As gentes do Passo da Cria, as trago registradas indelevelmente no côco, mais exatamente naquela parte profunda chamada hipocampo, de onde resvalam periodicamente para apertar o coração.

A adolescência se deu entre as amizades da Capelinha, da Escola Integrada, do Ginásio Industrial, do São João Batista.
Éramos uma gurizada medonha. Deslocávamos em bandos, hordas, para jogar bola pelos campinhos, para pegar um matiné no cinema, para a ida e volta da escola. Não havia recanto que não fossem desbravados por aquelas turmas, não havia recôndito lugar que, alguma vez, não tenhamos escarafunchado por um motivo ou outro.

A cidade, a sentíamos nossa. A Ramiro, o morro, a Colina, os baixios, o cinema, o Centenário, a beira do rio, a Timbaúva. Era a cidade onde crescíamos e não havia planos de êxodo nem de diáspora em nossas conversas. Não se tratava de escolha consciente, mas a gurizada não se importava em envelhecer por aqui.

Não percebíamos, ingênuos, que a cidade se ia trocando de pele. Somente quando homens feitos percebemos que os amigos não estavam todos, que as cores e olores se haviam cambiado, que as ruas não nos levavam aos mesmos lugares. Não havia mais o Vitorino, nem o Nicrinha, nem a nega Ôra. Somente depois de adultos nos demos conta de que a algaravia dos meninos se transmutara no burburinho de graves senhores, ciosos de seus negócios e da política. Mudou de mãos o dinheiro. Surgiram novos-ricos, aqueles que constroem seus caixotes de argamassa Ramiro abaixo. O tempo que nos envelhece, renova a cidade, a transforma em outra, estranha aos nossos sentidos.

Eventualmente encontro o Paulinho e o Selmar pela cidade. O Jari, raramente. O João mora em São Paulo e o Negrinho em Florianópolis. O Girafa, não sei em que praia se escondeu. Outros tantos que dividiam irmãmente seus dias comigo, não esperaram para envelhecer aqui. Foram-se em busca do futuro. Apequenou-se a cidade para eles. Cansaram-se de uma comuna pequena e antiquada que transmuta-se, mas não evolui. Talvez, como o poeta, tenham uma foto amarelada na parede a lembrar-lhes a origem. O que eles não se dão conta é que são parte inamovíveis da cidade. Sem eles nem os paralelepípedos regulares da praça Rui Barbosa fazem sentido.

A cidade onde envelheço terá um novo – ou velho – prefeito. Não faz diferença. Nenhum trará de volta os meus amigos, que se foram por não acreditarem em promessas futuras e incertas.

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