A Arte da Guerra

Não é uma guerra. O cenário é próximo, mas não é uma guerra. As guerras têm suas convenções protegidas pelo Direito Internacional Humanitário que protege e respeita todos os civis, feridos, doentes e náufragos. As guerras têm as quatro Convenções de Genebra e a Convenção de Haia a lhes estabelecer limites. As violações devem ser julgadas por tribunais penais nacionais e internacionais. Mesmo a nação injustamente agredida e legitimamente autorizada a revidar, não o fará sem observar os princípios do Direito Humanitário. As guerras são precedidas por rodadas diplomáticas que buscam acordos de paz.

Em tempo de guerra, generais estrategistas se ocupam de planejar as melhores táticas para sitiar cidades, cortar-lhes energia, água e provisões, buscando a capitulação do inimigo. Não existem, porém, muitos Alexandre, o Grande, e Napoleões Bonaparte por aí, e os resultados nem sempre são os mais efetivos.

Uma catástrofe climática é pior e mais efetiva do que a guerra.
As forças da natureza não perdoam nem pecados já confessados. Como só lhe toca cumprir as leis da física, desconsiderando o Direito Humanitário, a natureza não discrimina, não julga, não escolhe. Se a água do mar se aquece e sobe vapor à atmosfera, cairá como chuva. Se massas de ar frio e de ar quente se encontram, a luta produz ciclones e microexplosões. Em grande quantidade e de forma súbita, provoca tragédias como a que vemos hoje. Sem ligar para a arte da guerra, sem um general que se compare, a natureza sitia cidades, interrompe as estradas, afeta o fornecimento de água e energia, provoca o isolamento social, corta combustíveis, impede o acesso aos produtos essenciais e condiciona o direito de ir e vir. Não se utiliza de explosivos nem de tanques. Sua força aérea dispensa caças e drones. Suas bombas não são transportadas por mísseis. A natureza, fustigada e provocada por muito tempo, resolve contra-atacar, mas não respeita as regras da guerra.

Quando saí, domingo, em cima de minha pequena motinho elétrica pelas ruas atingidas pela maior enchente da história, a ver o que revelava o abaixamento das águas, dei-me conta da crueldade da batalha. Mal se iniciara a manhã e a cidade, como um cão molhado, se chacoalhava para expelir a água do corpo.

Os meios-fios, então, começaram a receber o inventário da desgraça. Móveis destruídos de escritórios, restaurantes, lojas, pequenos e grandes negócios eram descartados. Nos bairros, como se cada um não tivesse histórias impressas em sua madeira, móveis familiares eram rejeitados, inservíveis, em monturos que se formavam em frente às casas que lhes serviram de abrigo. Os lares encharcados, embarrados, sujos, feios. Olhares tristes e perdidos, a procurar uma razão, um motivo. A natureza não expõe motivos particulares. A natureza reage ao conjunto da obra humana.

De outra natureza, entretanto, explode a solidariedade que mobiliza gentes de diferentes cores, gêneros, credos e classes, em socorro dos desvalidos. O Poder Público se desempenha do seu papel legal de atender as vítimas, mas me refiro aos “anônimos da silva”. Os que tiram de si para entregarem a outrem. Eu presenciei pessoas que perderam tudo acolhendo a outros.

O cidadão, entretanto, não deve estribar sua esperança na solidariedade, senão na obrigação estatal e dos governos de, daqui para frente, repensarem as cidades para o novo normal climático. Porque a natureza é muito mais eficiente que os generais quando se trata da arte da guerra.

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