A arte da cidade

Houve um tempo em que as coisas eram mais simples e crises de identidade, mais raras. Os dias se passavam viscosos, atrasando-se, quase sem escoamento, e as novidades apareciam a cada século ou milênio. A validade de tudo era quase sem prazo. O que era, era. O que não era, não existia.

Nos anos 50 do século XX, Montenegro ganhou sua primeira e, por longo tempo, única estação de rádio. Era a Rádio Sulina. Época dos locutores de vozes graves para compensar a qualidade do áudio, ruim, cheio de estática. O Brasil se refestelava com os anos dourados de Juscelino Kubitschek (guris, aos livros!). Aquela era foi tão importante que se tornou minissérie na Globo (como sabemos, a Globo só passa coisas importantes). Os apresentadores radiofônicos locais estufavam o peito e inchavam as carótidas para emitirem tons graves e, ufanos, anunciar o prefixo da emissora: “Aqui rádio Sulina, falando diretamente de Montenegro, a“Metrópole do Tanino”. Pronto. Nós sabíamos quem éramos. Vivíamos em um país de política desenvolvimentista, o presidente era bossa-nova, Montenegro era uma metrópole produtora de tanino. Ninguém nos segura.

O epíteto “metrópole do tanino” tinha uma razão de ser. A cidade contava com três indústrias beneficiadoras de casca de acácia, processo durante o qual o tanino é extraído da leguminosa. Este extrato era utilizado para curtimento de couro, principalmente.

Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre, sem saber que o pra-sempre sempre acaba?Acabaram-se os anos dourados, a rádio Sulina virou Montenegro e, depois, América, os locutores agudizaram as vozes, restou apenas uma fábrica de tanino. As coisas começaram a cambiar estroboscopicamente e nos perdemos. Qual a nossa identidade?

Os brasileiros temos por hábito criar títulos para nossas cidades como forma de lhes dar identificação e distingui-las de outras mais de cinco mil. Zabelê, na Paraíba, por exemplo, é a “capital do jegue”. Alto Paraíso, em Rondônia, a “capital do jerico”.

Montenegro foi agregando epítetos oficiais à medida que a economia e a cultura foram se diversificando, demonstrando a dificuldade de desapego do passado e de se adequar aos novos tempos.
O vereador Paulo Azeredo quer modificar a lei que ele próprio promulgou quando prefeito, que “institui a designação distintiva de ‘Montenegro Cidade das Artes’ e, como designação distintiva complementar, Capital do Tanino e da citricultura”. Tanto distintivo parece tratar-se de transtorno de personalidade. Azeredo pensa, agora, que o termo “citricultura” é amplo e pode não refletir nossa real identidade: berço da bergamota montenegrina. E propôs projeto de lei que altera o distintivo.

A vereadora Camila de Oliveira aproveitou a olada para propor que o epíteto “Cidade das Artes” fosse retirado das designações oficiais, pois, segundo ela, muitos artistas locais minguam por falta de incentivos oficiais. Estabeleceu-se a guerra identitária do século. Montenegro é ou não é reconhecida como cidade das artes?

Nos tempos em que tudo era mais simples, na moldura de nossas belas paisagens só se sobressaiam acaciais, laranjais, frutos mil. Agora, laranjais foram trocados pelos bergamotais-de-montenegrinas Os acaciais não são mais rentáveis, e frutos mil não são gerados nas discussões do parlamento ibiá. Ali, enquanto o Plano Diretor é revisado, só se discute a identidade e os distintivos do município.
Um dia poderemos virmos a ser a cidade da mansão no topo do morro.

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