Acordou como sempre, num sobressalto, com o sol atravessando os pontos elípticos da persiana: cueca, camisa, calça, meia, toalha e banho. Esfrega, esfrega, esfrega o braço, a perna o sovaco. A barba encravada sangra com a navalha. Dentes de fera bem escovados. Gira a rosca da cafeteira, coloca o pó, a água e o fogo. O melhor dos cafés, tudo muito rápido, tudo muito forte. Atravessa o pátio pelo trilho de tijolos encaixados, as rosas vermelhas caem e seus espinhos espetam. No fundo do quintal, adentra a porta como faz todos os dias. Ela, sentada com seu vestido azul, gira a alça da xícara de um lado para o outro.
– Bom dia, mamãe – diz ele com a cara nervosa e indignada.
– Vai trabalhar de novo? – pergunta ela com voz rouca de 60 anos de cigarro.
– Sim, essas coisas são invencionice, não acredite, pare de ver TV – responde ele.
Abre o portão rangente, olha para os lados e sai de casa na direção de sempre. O sol ergue-se inteiro atrás do morro, as casas fechadas, as ruas ainda vazias e uma desconfiança no ar. Coragem! Demônios chineses, comunistas canalhas que querem dominar o mundo! Passa uma senhora com uma máscara branca cobrindo a boca e o nariz. Maldita! A padaria fechada, nada de pão com manteiga hoje. Atravessa um senhor com seu cão no colo com uma expressão de culpa. Medrosos! O coração bate forte, pensa em pegar o celular, mas é melhor não, chega de más notícias, chega de mentiras. Cientistas, pesquisadores, todos uns esquerdistas conspiradores, vagabundos que não querem trabalhar. Por que não pararam no carnaval, por que só agora? Pilantras! Um esquizofrênico contando canudinhos esbarra em uma senhora que já estava parada na fila do supermercado que só abre às oito. O Sr. K segue pela calçada da rua principal da cidade com suas lojas fechadas e, ao final, chega em sua barbearia e abre.
Horas se passam e ninguém para cortar cabelos. Senta-se na cadeira defronte ao espelho, o rosto replica no outro espelho, e no outro. E muitos rostos se multiplicam nos pensamentos, nas preocupações, nas contas, nas dívidas. O mundo não pode parar, a vida tem que seguir. Ninguém, ninguém para cortar cabelos. O mundo parece diferente, mas ele, ele falou que tem que continuar, afinal ele é o Presidente, o Presidente! A doença na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos é diferente, outro clima, outro povo, outra gente! Quantas doenças já tiveram e estamos aqui, não, não pode ser!
Nada de restaurantes ao meio-dia. Não importa, passo fome, mas fico aqui, trabalhando, trabalhando. Se não trabalhar, morro igual, morro do mesmo jeito. Como as pessoas não veem, não percebem que sem dinheiro o mundo não gira, não funciona. Entra um rapaz com um telefone na mão, senta na cadeira e pede para passar a máquina. Sequer olha no rosto do barbeiro, mas vai rolando a tela com o dedo e comentando as conspirações que vê nas redes sociais. Israel… Holanda… China, China, China…
A tarde passa lenta e quase nada de dinheiro. À volta, como sempre, exigia uma passada no mercado. Pessoas aglomeradas, cheias de compras: batata, farinha, arroz e feijão, muito feijão! O Sr.K compra sempre pão, para ele e sua mãe. Na fila, adultos, crianças, velhos, todos juntos num frenesi desesperado para armazenar tudo que podiam para enfrentar a hecatombe. Ele teve palpitações, sentiu um ar pesado, dificuldade mesmo de respirar, suou nas mãos e teve vontade de sair o mais rápido possível. Pagou, colocou os pães na sacola e seguiu o rumo de casa, dobrou a esquina, a outra esquina, e ao longe viu, na frente do portão rangente, uma ambulância, e o vestido azul esvoaçando sobre a maca.