A criatividade brasileira, sobretudo na esfera pública, transforma qualquer situação adversa em bom negócio, geralmente ilícito. Enquanto milhões de pessoas sofrem os efeitos colaterais do isolamento social provocado pela pandemia de coronavírus, não faltam espertalhões para desviar o dinheiro que deveria ser destinado à saúde para salvar vidas. Em vários estados, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Amazonas, os Tribunais de Contas investigam a compra superfaturada de respiradores e equipamentos de proteção individual, os chamados EPIs.
Como a situação exige muita rapidez, estas aquisições são feitas sem licitação. Nestes casos, é mais fácil procurar fornecedores e combinar o valor do produto, acrescido de uma comissão – nem sempre pequena – para o agente responsável pelo processo ou o político que tem o poder de pagar a conta. Assim, o dinheiro para 100 unidades, por exemplo, compra apenas 70 ou menos e o recurso que poderia ajudar a manter nossos pais vivos é drenado para o bolso dos criminosos. É a corrupção ajudando a matar. Infelizmente, esta prática está no DNA da nação e já se manifestou em outros momentos tão graves quanto este da nossa história.
Em 1903, o Rio de Janeiro era uma cidade extremamente suja, com problemas de habitação, falta de saneamento e muitas doenças. Entre elas, a peste bubônica, transmitida pela pulga dos ratos, que fazia vítimas todos os dias. Na época, o presidente Rodrigues Alves nomeou o médico infectologista Oswaldo Cruz para um cargo que hoje equivaleria ao de ministro da Saúde. Sua primeira missão era impedir que a população da então capital brasileira fosse dizimada, como já havia ocorrido na Europa em várias ondas da mesma moléstia, conhecida também como Peste Negra, nos séculos anteriores.
Cruz sabia que o correto era “limpar” a cidade para afastar a doença, mas esse processo seria demorado demais e a situação exigia pressa. Então ele tomou uma decisão arrojada: acabar com os ratos. Em todos os bairros, contratou “caçadores”, que eram obrigados a entregar, vivos ou mortos, 150 roedores por mês para receberem seus salários. Atingida a meta, para cada “cadáver” extra, o governo pagava mais 300 Réis, a moeda da época. Tentei atualizar o valor, mas não consegui. Imagino que, hoje, seria o equivalente a uns R$ 2,00.
Em poucas semanas, a caçada virou um lucrativo negócio. Os encarregados pela desinfestação começaram a comprar roedores. Pagavam a metade do valor que recebiam aos “fornecedores” e engordavam seus ganhos rapidamente. Alguns montaram criatórios, multiplicando os ratos em cativeiro para depois vendê-los ao governo. Até de outras cidades eram “importados”. Mais de 1,5 milhão de animais foram incinerados até o fim da campanha. A peste foi contida e deu tempo ao governo para a adoção de outras medidas sanitárias mais duradoras. Obviamente, algumas pessoas ganharam muito dinheiro e o golpe virou marchinha de Carnaval.
A constatação de que nosso país sempre foi muito mais gentil com os espertos do que com os honestos é desanimadora. Saber que tem gente embolsando o dinheiro que falta nos hospitais produz um misto de revolta e desesperança. Os “ratos” agora usam terno e gravata, gostam de vinhos finos e de pratos elaborados, mas continuam espalhando a morte. Não podemos perder a fé em dias melhores, mas a história se repete como uma espiral sem fim e tende a despertar nossos monstros. As consequências são imprevisíveis, mas uma coisa é certa: ou os corruptos são presos e realmente ficam na cadeia mais do que alguns dias ou meses, ou a sociedade “acabará” com eles. Da pior forma: atropelando leis e tribunais.