Sim, queremos mudar o mundo

Existem muitas formas de mudar o mundo. Estudar, pesquisar, fazer descobertas, inventar facilidades, dizer a coisa certa no momento adequado… Especialmente quando o objetivo é melhorar a vida das pessoas, reduzir sofrimentos, frear conflitos, estancar a dor e oferecer conforto. Jornalistas tentam fazer isso, através da mediação entre o fato e o público. Nas faculdades, porém, são orientados a manter uma distância segura, para que, ao narrar um acontecimento, não deixem suas impressões contaminarem o texto. É o que se costuma rotular como “isenção”.
Esta semana, mexendo na estante, colidi com um antigo livro de Teorias da Comunicação. Nele, um marcador de páginas amarelado assinalava justamente um texto que aborda este assunto. Parei por alguns instantes e li os poucos parágrafos, nos quais é cobrada do profissional da comunicação uma postura imparcial. Curiosamente, no dia seguinte, na internet, deparei-me com uma lista das fotos mais impactantes do século XX. Entre as primeiras colocações, está uma imagem capturada pelo sul-africano Kevin Carter, em 1993, que mostra uma esquelética criança sudanesa sendo observada, de forma interesseira, por um abutre, provavelmente tão faminto quanto ela. Em um país assolado pela fome e pela Guerra Civil, Carter queria denunciar a agonia da população através daquela menina.
Deu certo, em parte. A foto foi publicada pelo The New York Times e levou a um aumento no socorro humanitário ao país africano. Ele mudou o mundo, pelo menos daquelas pessoas que foram salvas. Porém, o autor foi duramente criticado, sob a alegação de que deveria ter interferido na situação para ajudar a criança. Carter ganhou o prêmio Pulitzer, mas a pressão foi tão grande que acabou se suicidando no ano seguinte.
A polêmica era justamente esta: se o jornalista deveria ter espantado o abutre, ou se a foto-denúncia era mais importante. Não é uma discussão simplista. Manter distância é difícil porque jornalistas são, acima de tudo, seres humanos, que sentem, erram e acertam. Já tive colegas que ajudaram a apagar incêndios e que correram atrás de ladrões. Um deles até impediu que uma pessoa cometesse suicídio por afogamento, embora, no Ibiá, exista uma orientação para que o profissional não se coloque em perigo durante as pautas.
Voltando a Kevin Carter, a verdade é que, na época, certos detalhes daquele episódio não foram divulgados. No Sudão, os profissionais da imprensa eram acompanhados por homens armados, que os impediam de interagir com os nativos. Mais importante: o fotógrafo espantou a ave depois de captar a foto, para que ela não ferisse a criança. Além disso, os pais da menina estavam a poucos metros da cena, numa missão de entrega de alimentos da ONU. A própria garota usava uma pulseira T-3 da organização, para identificação de subnutridos. Ou seja, não estava abandonada, como o recorte fotográfico propositalmente sugere.
Infelizmente, estas informações não “viralizaram” a tempo de impedir que o autor de uma das mais impactantes imagens da história tirasse a própria vida. Pelo menos, servem para absolver sua biografia e reafirmar aquilo que disse lá em cima: jornalistas são seres humanos que tentam mudar o mundo. Para melhor.

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