As crianças e a “carneação”

Quem nasceu e cresceu no interior certamente já participou da carneação de um boi, porco ou galinha. Ao contrário do que muitos pensam, carne não dá em árvore e, para comer um suculento churrasco, é preciso que um animal perca a vida. Na maioria das propriedades, as crianças são estimuladas a acompanhar a ação e, em muitas famílias, principalmente os guris têm no ato de “sangrar” o bicho uma espécie de rito de passagem. Os piás se consideram “gente grande” quando conseguem manusear a faca e espetar o coração de um suíno, degolar um terneiro ou simplesmente quebrar o pescoço de uma penosa.
Por sinal, matar requer técnica. No caso do porco, o ideal é atingir o coração e girar a faca ao puxá-la de volta. A ferida é maior e o sangue jorra com força. Quando fica preso dentro do corpo, dá mais trabalho limpar a carne depois. Já no abate de um bovino, a maioria prefere, primeiro, dar-lhe uma marretada na cabeça. E, já inconsciente, cortar-lhe a carótida, também aí garantindo um jorro consistente pelos mesmos motivos. Com as aves, é mais fácil. Basta segurá-las firme e torcer-lhes o pescoço até que quebre. Depois, é bom separar a cabeça do corpo para que… adivinhem… o sangue não fique nas entranhas do bicho.
Criadores conscientes e com o mínimo de humanidade procuram minimizar o sofrimento dos animais e, por isso, limitam a participação das crianças ao resto da “função”. Cabem a elas tarefas como picar a gordura que será derretida para virar banha, o transporte da água usada no processo e, com um pouco de sorte, o preparo, no espeto, de pequenos nacos de carne para serem consumidos por todos durante o trabalho. Para os pequenos, os pais costumam reservar facas sem ponta e só os maiores têm acesso às chamadas “carneadeiras”.
Esse texto, porém, não se propõe a ser um manual de abate. O ponto é outro. Esta semana, num grupo do Facebook chamado “Rio Grande Antigo”, ocorreu a publicação da foto em que um avô, com um sorriso debochado no rosto, pendura ao redor do pescoço de um garoto com menos dez anos, os testículos de um touro morto momentos antes. Na imagem, o menino sai correndo, apavorado e aos prantos.
De fato, existem pessoas – especialmente crianças – mais sensíveis, mesmo no interior, que não conseguem apunhalar um porco ou passar a faca no pescoço de um terneiro. É natural e sempre foi assim. Alguns internautas criticaram a atitude do avô e foram destratados com o ódio de sempre. “A gente aprendia a ser homem”, escreveram. “Guri medroso!”, acusaram outros. “É preciso manter as tradições!”, comentaram mais alguns. No total, foram cerca de 500 manifestações e houve uma quantidade assustadora de impropérios dirigida a quem ousou contestar a atitude do tal avô.
Quem vive em propriedades rurais, cercado de bichos, aprende desde cedo a gostar deles, a alimentá-los, a cuidar, mesmo sabendo que seu destino está traçado desde o dia em que nascem. Ainda que sejam criados para servir de alimento, sacrificá-los pode ser difícil e até impossível para muita gente, especialmente quando ainda não se é adulto. Então, ao contrário do que acreditam muitos “especialistas de Facebook”, crianças do interior não se tornam “homens” quando têm coragem de matar. Assim como as da cidade, elas assumem essa condição ao adquirem a consciência de que todos possuem limitações, sentimentos, virtudes e fraquezas e que cada um deve ser respeitado em sua individualidade.

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