A fé e as piadas ruins

Acompanho na internet, há vários anos, os vídeos do grupo Porta dos Fundos. Gregório Duvivier e Fábio Porchat, à frente de vários artistas talentosos, destilam um humor normalmente inteligente, fazendo piada sobre situações do dia a dia que costumam denunciar nossas omissões e incoerências. Contudo, nem sempre eles acertam a mão. Ninguém é bom e eficiente o tempo todo.
Ano passado, quando a trupe lançou “Se beber, não ceie”, seu especial de Natal na Netflix, fiquei decepcionado. Não pelo fato de terem representado os apóstolos acordando, ainda bêbados, do seu último encontro com Cristo antes da crucificação, mas porque o texto era ruim e as piadas, sem graça. Nem vi todo e também não pretendia assistir ao deste ano. Contudo, a polêmica que “A primeira tentação de Cristo” vem produzindo me obrigou a voltar atrás. Um jornalista precisa estar por dentro daquilo que as pessoas comentam.
Com o espírito preparado para a balela, fiz o sacrifício. No filme de 46 minutos, Maria prepara uma festa-surpresa de aniversário para Jesus, que está fazendo 30 anos, e chama todo o bairro. Entre os convidados especiais, estão os três Reis Magos e Deus Pai. Jesus, que está há 40 dias no deserto “fazendo um mochilão”, volta com um “amigo”, Orlando. A festa é recheada por brigas de família, fofocas e alguns “climões”. Jesus fica sabendo que não é filho de José, mas sim de Deus, representado como uma figura safada, que tenta seduzir Maria o tempo todo.
A “bobajada” tem seu ponto alto quando Jesus bebe um chá alucinógeno e se encontra com divindades de outras religiões, como Buda, Shiva, Jah e até mesmo um ET. Nessa hora, dei pause para ver quanto tempo a tortura ainda levaria. Como nada é tão ruim que não possa piorar, a festa de aniversário de Jesus sofre nova reviravolta. Orlando se transforma em um “boy lixo”, assume a forma de Lúcifer e reivindica sua posição como, também, filho de Deus. Segue-se uma batalha com desfecho previsível e Jesus aceita fazer uma experiência de três anos como divulgador da palavra de Deus, com uma exigência: que lhe seja dada autonomia para escolher os doze homens que irão segui-lo.
O tempo todo, os humoristas insinuam que Jesus é gay e é exatamente este aspecto que despertou a ira de muita gente. A sugestão de que o próprio Deus é um pervertido, buscando sexo com Maria do começo ao fim da… trama, não recebeu dos cristãos, nem de longe, o mesmo repúdio. Aliás, no especial do ano passado, o próprio Cristo foi retratado pelos humoristas como um mau caráter, o que também não indignou ninguém.
“A primeira tentação de Cristo” não é um trabalho inspirado e fica devendo em risadas. Contudo, mais uma vez, o Porta dos Fundos atingiu seu objetivo, que é fazer pensar e denunciar a hiprocrisia da sociedade. Sobretudo de muitos frequentadores de igrejas e templos, sejam eles católicos, evangélicos ou muçulmanos. Quem se sente atingido em sua fé quando Jesus é representado como um homossexual, mas não se incomoda quando o pintam como um salafrário precisa repensar a relação que imagina ter com Deus.
Com o Natal chegando, temos diante de nós um bom momento para refletir e julgar nossos próprios atos. Tenho o maior respeito pelos ateus, que praticam o bem com base em princípios filosóficos, mas permitam-me dizer que nunca precisamos tanto da fé. Não da que teme uma caricatura de Jesus e um conjunto de piadas ruins, mas daquela que nos dá forças para continuar trabalhando e acreditando que iremos vencer a ignorância.
Aos leitores e amigos, um feliz Natal!

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