Maçã do horror

Ir a Porto Alegre não deveria ser uma tortura, mas era. Especialmente às 7 da manhã. A empresa mantinha apenas um coletivo, que era cercado pela turba de desesperados por assentos, sacudindo bilhetinhos amarelos na cara do pobre cobrador.
Adquiri conhecimento nessas aventuras diárias. Aprendi a dormir enrijecendo os esternocleidomastóideos, mantendo a cabeça firme. Experimente dormir encostado no vidro, uma cabeça que vibra por uma hora dói o dia todo. Eu era um “zen-busão”, nada me irritava. Quando não dormia, lia. Passei pela grande prova quando sentou-se ao meu lado um senhor, figura típica da cidade, desconectado da realidade. Sempre de capote, creio que para esconder as manchas nas calças, tinha incontinência urinária. Eu respirava curto e pensava em uma versão do livro que lia: “Os irmãos Karamijov”.
Nada me abalava, até o dia em que a velha resolveu comer a maçã.
A cena começou lúdica: típica agricultora, tirou do saco de Cristalçucar sua fruta. Removeu o talo e começou a descascá-la… com as unhas! Por que diabos não trouxe um canivete? Naquela bolsa caberia uma machadinha!
Minha curiosidade aumentou ao vê-la guardar os pedacinhos de casca. Teorizei que iria secá-los para fazer chá. Imaginei a doce velhinha oferecendo uma deliciosa infusão de ervas com um toque de maçã, e unha.
Até aí estava divertido, foi então que a velha começou a comer a maçã. Digo “comer” na falta de um verbo melhor que defina a cena.
Ela mordiscava, sugava, mastigava, lambia e, em rápidas cuspidelas, devolvia pedaços de casca que escaparam de suas afiadas unhas. Arfava, emitia estalidos molhados, pigarreava, salivava. Juro que ouvi um regurgitar, mas poderia ser minha imaginação abalada.
Fechei os olhos, tentaria dormir.
Sem a imagem, os sons ganham evidência. Ecoava a sinfonia de bochechas flácidas em dó maior. A imaginação me traía: a velha está fazendo sexo oral com a maçã!
Aguentei de olhos abertos. Faltava mais da metade do caminho, e metade da fruta.
Ao final do espetáculo, as unhas novamente entraram em cena, desta vez arrancando sementes dos restos roídos. Com o lanche feito os sons cessariam. Só que não!
Começou então a sessão limpeza. Usando a técnica do “palito pneumático”, a velha contraía as bochechas empurrando ar entre os dentes na tentativa expulsar os resíduos. A vantagem deste método é que não se perde nada, tudo que sai vai a jato para o bucho. Os sons estridentes seguiram, já estávamos na reta da Castelo Branco. Levantei e fui para a frente do ônibus, queria ser o primeiro a sair.
Embaixo da passarela havia um senhor em uma banquinha vendendo chás. Eu precisava urgentemente pensar em outra coisa.

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