A placa indica 80 Km por hora. A grande maioria está a 120, até ônibus velho me ultrapassa. Agora, nova estrada, a velocidade regulamentar é 100 km por hora e, na pista da esquerda, colada à mureta de concreto, passam cometas a 140, 150. “Não dá nada, esses carros modernos são feitos para conduzir e frear com muita eficiência, a velocidade da estrada é subdimensionada” , argumentam os pilotos enquanto dão uma olhadinha na mensagem que chegou no Whats.
Gosto de observar o trânsito e como se comportam os cidadãos médios, pagadores de impostos e de famílias de bem. A gente quase esquece que há um ser humano dentro daquela armadura motorizada, que vaza sinais vermelhos, estaciona onde bem entende, ultrapassa sem segurança nem respeito. O tempo dessas pessoas é bem mais caro do que o tempo do resto, há sempre muita pressa e direitos adquiridos envolvidos nessas nobres vidas. O comportamento no trânsito é um bom modelo de como agem as pessoas investidas de certo poder.
Há um caminho legal, burocrático e chato para a maioria das necessidades mundanas modernas. Da fila do pão ao contrato milionário, há nuances, ajustes, negociações, cláusulas, respeito, distância segura.
E há os atalhos e os jeitinhos, que a grande maioria usa, porque, afinal, esse país é muito burocrático, tem leis demais, tudo é complicado.
Há regras claras para evitar uma pandemia: só saia de casa se for muito necessário, mantenha-se distante das outras pessoas, use máscara e, principalmente, use o bom senso. Na prática, o caos, a histeria e “não dá nada” até que morram uns parentes.
Uma vez eu perdi mais de 40 minutos tentando convencer um gerente de compras de uma empresa que eu não poderia dar desconto no meu orçamento, pois já havia calculado um valor justo. Ele insistia num desconto, alegava que eu, como todo mundo, teria uma margem de negociação embutida. Eu argumentava que se tivesse inflado o meu valor eu seria um fornecedor desonesto, além do mais, colocar valor a mais só para dar um desconto me parecia uma estúpida perda de tempo. Eu finjo que dei desconto, ele finge que negociou. Mas não teve jeito, dei desconto e trabalhei um pouco menos.
Temos então um acordo social tácito e esquizofrênico: endurecemos leis e regras, burocratizamos, exageramos, pois está embutida a burla tradicional do sistema. Dizemos que todos devem ficar em casa na pandemia sabendo que a boa parcela do “dá nada” vai sair sem se cuidar. Quem segue as regras sente-se o idiota. Hay que endurecer, usar o bom senso, jamás!