Durante a fase de encerramento de minhas atividades em consultório, após 53 anos de trabalho e milhares de pacientes atendidos, vivenciei diversos sentimentos e emoções. Entre eles, um certo alívio. Por ter chegado ao fim da jornada sem um único processo ético, penal ou cível, um registro de ocorrência ou uma reclamação junto às instituições as quais estive vinculado. Um pouco por sorte, bastante por cuidado, e talvez muito por ter vivido boa parte deste tempo num mundo muito menos judicializado e litigante.
Somente nos últimos anos é que começou a aparecer no meu radar, e a me preocupar um pouco, a possibilidade de poder sofrer qualquer ação judicial que me tirasse o sono, arranhasse minha reputação ou levasse parte do meu pequeno patrimônio.
Durante muitos anos o exercício da medicina estava alicerçado na relação médico-paciente: de um lado confiança do paciente, e de outro, compromisso do médico, em fazer tudo o que pudesse ou soubesse. Não havia lugar nem para desconfianças, nem para omissões. Por isto, não havia processos judiciais nem alegação de “mal practice”.
O Conselho Nacional de Justiça apontou um aumento de 1.600 % no número de processos judiciais por erro médico entre 2005 e 2015, chegando a 26 mil processos em 2017. Alarmante e preocupante, tanto em relação à proteção da saúde humana, quanto à proteção dos profissionais da medicina.
Por que chegamos a este ponto? Em primeiro lugar, a relação entre médicos e pacientes era direta e pessoal, sem intermediários. Hoje há a interposição ou do sistema público de saúde, ou de empresas prestadoras, agências reguladoras, Judiciário, contratos, etc. Saiu o paciente e entrou o usuário. Saiu o médico e entrou o prestador. Uma relação apenas de consumo.
A mim, como médico, também cabe perguntar: o que houve conosco? Onde estamos errando? Nossa formação técnica está sendo deficiente? Afrouxamos nos padrões éticos e de comportamento, que sempre foram um atributo da profissão? A proliferação de faculdades de medicina tem a ver com tudo isto, produzindo mais quantidade do que qualidade?
E agora vou tocar num ponto sensível, para o qual peço compreensão. Com pesar, reconheço muitos desvios em muitos de meus colegas de profissão. Veja o caso da “ Máfia das Próteses”. E, ao identificar também desvios em integrantes de outras categorias, de forma alguma os estendo ao conjunto honesto da maioria. Refiro-me a operadores do Direito. Se há mais tempo já é usada a expressão pejorativa de “advogados de porta de cadeia”, também caiba talvez para alguns a de “advogados de porta de hospital”.
E as consequências de tudo isto? De um lado, a perda de confiança: dos pacientes em relação aos médicos, e dos médicos em relação aos pacientes. Os ingredientes necessários para a nefasta prática da medicina defensiva. Exames e procedimentos fúteis, desnecessários e até com algum risco, pedidos não por necessidade diagnóstica ou terapêutica, mas para uma eventual defesa jurídica futura. Não bastassem as bulas de medicamentos, que isentam os laboratórios de qualquer responsabilidade e a jogam sobre pacientes e médicos, os “termos de consentimento livre e informado “para muitos procedimentos, tem também, além de informação, um claro viés de defesa ante qualquer frustração de expectativa ou má-fé de quem pretenda extorsão contra médicos.
Que pena, que tristeza termos chegado a este ponto. Uma sociedade precisa ser tão desconfiada, litigante e judicializada? Será este o mundo que queremos para nossos filhos e netos? O ser humano não tem potencial para coisa melhor? Quero que a resposta seja sim.
Grande abraço.