Ao amigo Dr. Osmar Faller.
Escrevi este texto há tempos, antes de partires fora do combinado. Não o escrevi pensando em ti.
Começo destacando apenas algumas poucas frases do Livro do Eclesiastes, que, entre outras coisas, diz: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora “
Dou agora uma guinada para buscar uma definição jurídica do que seja um comodato. E encontro que COMODATO é um tipo de contrato em que ocorre o empréstimo gratuito de coisas que não podem ser substituídas por outra igual. A única obrigação de quem recebe o bem é devolver no prazo combinado e nas mesmas condições em que recebeu.
Pois o leitor poderá estranhar e perguntar: existe algum nexo possível entre o texto bíblico e o conceito jurídico? Somos representantes da espécie mais vulnerável ao nascer, absolutamente incapaz de sobreviver por seus próprios meios. Mas com a ajuda de muitos se desenvolve até a condição de rei da criação. Não há limites para o potencial de desenvolvimento humano.
E no transcurso do nascer até o morrer, vamos somando e incorporando tanto e tanto, que se fôssemos fazer uma lista, não acabaria nunca. Durante muito tempo, vamos acumulando bens materiais e bens intangíveis. Aprendemos a sonhar e conquistar. Ganhamos força física, beleza, agilidade e habilidades, conhecimento e cultura, fama e poder. E bens materiais. É verdade que o património amealhado por muitos é bem pequeno. Mas há também os que acumulam muito, fortunas que precisam de muitos algarismos para serem quantificadas. Entre os bens mais valiosos que podemos colecionar, penso que talvez poucos ou nenhum tem a importância dos nossos relacionamentos, dos laços familiares, dos afetos, dos conhecidos, dos amigos. Aqueles que vão fazendo parte de nossas vidas.
E por muito tempo pensamos que tudo isto fosse nosso para sempre. Com a posse, de fato e de direito.
Mas o tempo passa, e depressa, e nós mudamos. E chega um momento em que nos damos conta de que já estamos deixando de acumular, e que isto já não faz mais tanta falta. Mas mais. Vamos nos dando conta de que, além de não acumular, já estamos num processo de descarte, no geral involuntário, de tantos bens e valores que por muito tempo pareciam nossos para sempre. Eu, pelo menos, já estou me dando conta disso. Confesso que sempre tive alguma dificuldade de lidar com o desapego, que é a capacidade de perder coisas com desprendimento, sem sofrer. Como descartar uma camisa usada quando compro ou ganho uma nova. Mas queiramos ou não, vai chegar o momento do descarte. Da juventude, da saúde, da importância social, das capacidades que desenvolvemos, dos bens materiais que acumulamos. De todas as perdas possíveis, penso que a morte dos parentes, conhecidos e amigos é a que mais faz sofrer. Porque a perda de cada um vai deixando nosso mundo um pouco menor, e a sensação de vazio um pouco maior.
Pelos poucos exemplos ou argumentos apresentados, penso que o início da crônica já mostra alguma coerência. Porque para todos, em algum momento, chegará seu tempo de arrancar o que plantou, de perder o que buscou, de lançar fora o que guardou.
Por tudo isto, penso que devemos fazer o melhor uso possível, de tudo o que recebemos, não com título de posse, mas de comodato. Para que tudo dê sentido, muito sentido, à grande ventura de viver.
Grande abraço
PS: Amigo Osmar. Espero reencontrar-te. Mas confesso, não estou com pressa.