Se você assistiu ao filme “Os 7 de Chicago”, disponibilizado recentemente pela Netflix, é provável que tenha sentido asco, revolta ou incredulidade. Numa das cenas mais repugnantes – quando um homem é espancado, amordaçado e amarrado a uma cadeira para, em silêncio forçado, ver seu destino ser decidido por injustos e preconceituosos homens da lei – eu questionei se aquilo realmente representava a realidade. Parecia boçal demais. Dias depois, descobri que a cena não apenas é verídica como ainda “ameniza” a realidade. A tortura, que dura minutos na ficção, na vida real, durou dias.
Isso não lhe remete a nada? Nesta semana, eu fui lembrada que, no Brasil de 2020, a justiça tem muitas semelhanças com a americana de 1968. A realidade daqui também me fez sentir asco, revolta e incredulidade. Hoje, segundo dados do IBGE, nosso país tem aproximadamente 105 milhões de mulheres, pouco mais de 50% da população. E cada uma delas nesta semana foi lembrada de que ainda precisa lutar a cada amanhecer por direitos que lhe são tomados caso baixe a guarda. A cada anoitecer nos perguntamos se passar em determinada rua é seguro. A cada vez que pedimos um carro por aplicativo torcemos para que tenha uma mulher ao volante. Se pegamos o transporte público, vamos “armadas”, prontas para, na base do “safanão”, afastar engraçadinhos. E agora ainda somos informadas de que, se bebermos, estamos autorizando abuso sexual. Não. Não mesmo. As mulheres estão deixando claro a esta injusta justiça brasileira que não aceitarão ser tratadas desta maneira.
O caso que trouxe isso tudo à tona teve início em 2018, quando a blogueira Mariana Ferrer acusou o empresário André de Camargo Aranha de tê-la estuprado. Há imagens que mostram Mariana na companhia do empresário e a perícia encontrou seu sêmen e sangue dela nas roupas. Ela afirmou que tinha sido drogada e que, por isso, não sabe exatamente o que aconteceu. O inquérito policial concluiu que o empresário havia cometido estupro de vulnerável, quando a vítima não tem condições de oferecer resistência. O Ministério Público denunciou o empresário à Justiça. Mas, num julgamento nojento, a vítima foi tratada como uma acusada. E a ela não foi oferecido nada além de acusações preconceituosas. Na sentença, o juiz considerou que Mariana não estava em condições de dar consentimento à relação sexual, não existindo, assim, o dolo, ou seja, a intenção. Assim, foi criado um novo tipo penal na legislação brasileira: o “estupro culposo”. Aranha foi absolvido. O caso foi trazido à luz pelo site The Intercept.
Agora debate-se se o termo “estupro culposo” está na sentença ou apenas foi uma má interpretação. Também se diz que “não era bem assim”. A verdade é que, contra uma mulher sempre há más interpretações e as coisas nunca são bem assim. Dolo é intenção. Alguém pode matar sem intenção. Num atropelamento, por exemplo. Foi acidental, por isso um homicídio culposo, sem dolo, sem intenção. Mas ninguém estupra alguém sem intenção. Por isso um estupro é sempre doloso e jamais culposo. Se eu e você entendemos isso facilmente, como um juiz não entenderia? É que, para condenar um homem, nem sempre há vontade. E para julgar uma mulher sempre sobram preconceitos. Quem sabe, daqui a 40 anos, algum cineasta faça o filme dessa história e nós consigamos nos surpreender como em Os 7 de Chicago, porque hoje, infelizmente, a história de Mariana é mais uma entre as de milhões de brasileiras e não chega a espantar ninguém.