Resíduos industriais são transformados em um condicionador de solo
Nascido em Paris, em 1743, Antoine-Laurent de Lavoisier pertencia à nobreza francesa. Cientista, foi ele quem semeou o conceito segundo o qual, na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Guilhotinado pela Revolução pelo simples fato de ter sido rico, suas teorias circulam, ainda hoje, na seiva de muitos projetos de preservação ambiental. Um deles é a montenegrina BioC, nome fantasia da Central de Beneficiamento de Resíduos Sólidos Industriais Classe 2 A.
O pai do empreendimento é Paulo Roberto Lenhardt. Seu DNA está também em várias outras iniciativas, como a cooperativa Ecocitrus, a Rede Ecovida de Agroecologia (que articula, agricultores, organizações de assessoria e pequenas agroindústrias nos três estados do Sul) e o Instituto Morro da Cutia de Agroecologia (Imca).
A BioC está situada na estrada Marcírio de Souza Carpes, próximo à ERS 124, em Montenegro. É especializada na transformação de resíduos orgânicos em adubo, através do processo de compostagem aeróbico em escala industrial. “Cada pessoa, ao consumir produtos industrializados, colabora indiretamente para a geração de resíduos, que, sem o tratamento adequado, transformam-se em lixo”, explica Lenhardt. “Lixo é algo bom colocado no lugar errado”, define.
A compostagem é um processo de transformação de restos orgânicos, que ocorre no ambiente de forma natural. Os microrganismos, sob condições ideais de umidade, oxigênio e nutrientes, digerem a matéria, transformando-a em adubo. Na central de compostagem da BioC, este processo é feito em larga escala, acelerado pela mistura dos diferentes resíduos e pelo constante revolvimento das leiras de composto, proporcionando oxigênio para os microrganismos se desenvolverem.
Lenhardt explica que os nutrientes contidos nos restos orgânicos, após passarem pelo processo, ficam novamente disponíveis para as plantas a serem adubadas com o composto. Tornam o produto um excelente reestruturador de solos degradados e fonte de nutrientes para produção de alimentos saudáveis, jardinagem, silvicultura, reflorestamento e pastagens, entre outros usos.
A BioC nasceu em 2008 e atualmente processa até 6.000 toneladas/mês de resíduos, dos quais se destacam, principalmente, os da indústria florestal (casca esgotada e cinza), do processamento de soja, da fabricação de sucos e óleos essenciais, das indústrias de conservas e embutidos, de laticínios e das podas urbanas. “O principal fornecedor de resíduos de podas é a Prefeitura de Montenegro, que entrega este material sem custos e, ao fim do processo, ganha gratuitamente composto para hortas escolares”, explica Lenhardt.
A central recebe os rejeitos de quase 30 empresas, entre as quais se destacam, pelo volume e tipo de produto, Tanac, BioCitrus, Bianchini, Oderich, Zaffari, Cooperativa Piá e Arauco (antiga Masisa). “Também recebemos o rejeito das caixas de gordura de muitos restaurantes e refeitórios industriais”, aponta o diretor da BioC. Lenhardt destaca, sobretudo, a parceria com a empresa Tanac, proprietária de uma das áreas, de 11 hectares, em que ocorre a produção. “Eles foram e continuam sendo essenciais para o sucesso do empreendimento”, reforça.
Na central, além de Paulo Lenhardt, trabalham diretamente outras 15 pessoas, incluindo os filhos do empreendedor, Frederico, que é permacultor; e a bióloga Florence; além do genro, o geólogo Gabriel Pastl. A unidade é licenciada e fiscalizada pela Fepam. O composto, que se tornou um condicionador de solo de nível Premium, é utilizado por empreendedores e órgãos públicos em lavouras, pastagens, pomares, hortas, viveiros de mudas e flores e em jardins. Também em sistemas semihidropônicos e espaços confinados orgânicos (estufas).
Composto agrega mais valor às culturas
O composto orgânico da BioC tem várias aplicações como reestruturador de solos para diversas culturas. O cultivo de morangos é um bom exemplo de atividade em que ele faz a diferença. Quem garante é o agricultor Douglas Maurer, que possui suas estufas na propriedade da família, em Santos Reis.
Com vocação consolidada na citricultura há várias décadas, Maurer lançou as bases do novo empreendimento há cerca de um ano, com a construção das instalações. Em junho, plantou as mudas, mas, primeiro, fez uma pesquisa sobre o melhor produto para qualificar o solo. “Antes de implantar a cultura, eu pesquisei vários compostos e o da BioC foi o que mais se adaptou às exigências do morango, que é uma planta muito sensível. Dependendo do material que usar, pode até matar a planta”, afirma.
O produtor explica que está 100% satisfeito com os resultados de sua escolha. “O nosso morango, pelo fato de ser orgânico, tem um grande valor agregado. Buscamos isso desde a implantação e o composto contribuiu muito para alcançar este objetivo”, atesta Douglas.
De acordo com o engenheiro agrônomo Jair Staub, da BioC, o produto comercializado pela empresa é fruto de um processo rigoroso, que obedece a todas as normas de uma boa compostagem. “Ele chega ao final como um material estabilizado, muito bom para ser usado em qualquer cultivo, sobretudo em hortaliças. Claro que, no uso, é preciso observar corretamente a dosagem, seguindo a recomendação técnica”, ressalta.
Staub reforça que, na produção orgânica, é preciso tomar muito cuidado com a escolha dos fertilizantes que serão usados no processo. “Hoje em dia, muitos substratos são feitos à base de turfa e vermiculita, normalmente caros e finitos. O composto da BioC substitui esses produtos, o que vem a facilitar o trabalho do agricultor”, aponta o agrônomo.
Como muitos cultivos ocorrem em áreas pequenas e próximas às casas, um dos fatores a ser levado em conta é o odor. No caso da BioC, aponta Staub, há um rigoroso controle de processos na compostagem para que o produto final seja inodoro. “Tanto que as instalações são abertas para visitações e isso é uma coisa que a gente ressalta para todos os clientes da BioC. Fazemos questão que eles venham conhecer o processo de compostagem, para saberem o que estão usando, que matéria-prima chegará em suas propriedades”, conclui o profissional.
Produtos usados no composto
– polpa e casca de frutas;
– borra de soja;
– restos de alimentos;
– resíduos de caixas de gordura;
– folhas e galhos de árvores;
– grama e restos de jardinagem;
– leite e outros laticínios vencidos;
– casca e restos de madeira;
– lodo de tratamento de efluentes;
– óleo vegetal;
– cinza.
Como funciona o processo de transformação dos resíduos em adubo?
A compostagem de resíduos orgânicos acontece em fases, sendo elas muito distintas uma das outras.
1ª) Fase mesofílica: nessa etapa, os fungos e as bactérias mesófilas (ativas a temperaturas próximas da temperatura ambiente), começam a se proliferar na matéria orgânica aglomerada na composteira, fazendo a decomposição do lixo orgânico. Primeiro são metabolizadas as moléculas mais simples. Nessa fase, as temperaturas são moderadas (cerca de 40°C).
2ª) Fase termofílica: é a fase mais longa da compostagem, podendo se estender por até 12 meses, dependendo das características do material que está sendo tratado. Nessa fase, entram em cena os fungos e bactérias denominados de termofílicos ou termófilos, que são capazes de sobreviver a temperaturas entre 65°C e 70°C, à influência da maior disponibilidade de oxigênio – promovida pelo revolvimento da pilha inicial. A degradação das moléculas mais complexas e a alta temperatura ajudam na eliminação de agentes patógenos. Quanto maior o tempo, melhor o resultado, inclusive, para a eliminação de odor.
3ª) Fase da maturação: é a última fase do processo de compostagem, podendo durar até dois meses. Nessa etapa, há a diminuição da atividade microbiana, da temperatura (até se aproximar da temperatura ambiente) e da acidez. É um período de estabilização que produz um composto maturado. A maturidade do composto ocorre quando a decomposição microbiológica se completa e a matéria orgânica é transformada em húmus, livre de toxicidade e elementos patógenos.
Primeiras ações ocorreram na década de 80
Se Lavoisier e sua teoria de transformação é uma semente para o trabalho de ambientalistas como Paulo Roberto Lenhardt, também é verdade que ela foi abundantemente regada por outro defensor da natureza ainda não devidamente reconhecido pelos brasileiros:
José Lutzemberger. Nascido em 17 de dezembro de 1926, em Porto Alegre, “Lutz” foi agrônomo, escritor, filósofo, paisagista e ambientalista. Filho de imigrantes alemães, era especialista em adubos e, por muitos anos, trabalhou para companhias do setor, a maior parte do tempo para a Basf, viajando a serviço para vários países como técnico e executivo da empresa. No fim dos anos 1960, começou a se desiludir com as políticas agrícolas danosas para o meio ambiente e, em 1970, deixou seu emprego para dedicar-se à causa do ambientalismo.
Em 1971, junto com um grupo de simpatizantes de Porto Alegre, Lutzemberger fundou a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), uma das primeiras entidades ecológicas do Brasil. À frente da Ong, ganhou projeção local, nacional e internacional em inúmeras campanhas, conseguindo importantes conquistas em uma época em que o ambientalismo era praticamente ignorado. Nessas ações, seu exemplo contagiou muita gente, como o montenegrino Paulo Lenhardt.
“É do Lutzemberger a proposta de devolver para a terra aquilo que tiramos dela, fechando um ciclo e tornando-a novamente fértil”, explica. Lenhardt não é novato no segmento. Ele atua em projetos sustentáveis desde 1983. Na época, Lutzemberger prestava consultoria à Tanac num projeto de conversão de resíduos de acácia negra em fertilizante para os plantios de mato e pomares dos citricultores do Vale. “Foi a minha principal escola. Aprendi a fazer composto em grande escala”, recorda Paulo.
Mais tarde, propostas semelhantes foram desenvolvidas para a indústria de sucos da Antárctica, situada em Montenegro, e para a Aripê, hoje Biocitrus. Na época, os citricultores da região recebiam a consultoria de uma empresa alemã chamada GTZ, vinculada ao governo daquele país. Graças a esse trabalho, sugiram na região em torno de 20 grupos Pro-Renda. “A GTZ ajudou na organização dos produtores, na qualificação dos pomares e na difusão de uma visão comercial mais adequada”, recorda. A polpa das frutas que restava das fábricas de suco e de óleo essencial, misturada à casca da acácia e à cinza, resultava num excelente substrato, que era repassado aos colonos para reestruturar os solos.
Lenhardt recorda que, dentro dos grupos, já havia, naquela época, agricultores interessados em produzir de forma ecológica, sem o uso de produtos químicos nos pomares. Nascia assim, em 2 de novembro de 1994, a Ecocitrus, entidade da qual foi um dos fundadores.
Lenhardt também foi o criador, na década seguinte, do Instituto Morro da Cutia de Agroecologia. Entre as ações desenvolvidas, a que mais chamou a atenção e ganhou prêmios foi a utilização de óleo de cozinha usado como combustível para veículos e máquinas.