Um monstro disforme e louco

Muitos historiadores creem que o parasito da malária (na origem da palavra: o mau ar) seja o maior causador de mortes humanas de todos os tempos. Este parasito transmitido por mosquitos e a humanidade se cruzaram seguidamente durante milênios, deixando sempre trágicas histórias. Comum na Roma da Idade Média, quando um conclave se reunia para eleger um novo papa, a malária mandava vários cardeais desta para melhor.
Daí os espanhóis chegaram aos Andes e deram de cara com uma árvore chamada Kina ou Quina, que curava a febre. Os jesuítas levaram para a Europa e o concílio papal de 1655 não registrou nenhuma morte de cardeal. Graças à sabedoria Inca, povo que eles acabariam por dizimar.
Apesar do “remédio dos jesuítas” ser um sucesso, a Inglaterra, protestante, não aceitou um remédio católico para seus males. Oliver Cromwell, um dos seus grandes líderes, pereceu de malária.
Depois disso surgiu o malandro, que bem podia ser brasileiro. Um tal Robert Talbor disse que achou uma fórmula secreta para combater a malária. Salvou a vida do rei Carlos II. Talbor enriqueceu curando ingleses da malária e só na sua morte descobriram que sua fórmula secreta era o mesmo pó extraído da árvore andina.
Os ingleses começaram a tomar quinina só por precaução. Misturavam a quinina, muito amarga, com gim. Fato que, segundo o livro “Os botões de Napoleão” acabou por se tornar o nosso “gim com tônica”.
Hoje em dia, vemos que as famílias têm levado cada vez menos seus filhos para vacinação. O que, por si, nos remete à Inglaterra do século XVII, onde um preconceito religioso condenava pessoas à morte por uma doença que já tinha cura. Em 2017, já houve no Brasil queda da cobertura vacinal em doenças como poliomielite, sarampo, caxumba e rubéola. Grupos antivacina existem até no Facebook. E assim caminhamos para trás, depois de séculos de avanços.
A negação da ciência, da lógica, do sentido das coisas está atrelada a vários movimentos retrógrados que, impulsionados por preconceitos, ignorância e misticismo, ameaçam a saúde pública, a política e a relação saudável e democrática entre as pessoas. As relações, em sociedade, não andam sozinhas. Os movimentos tendem a se agrupar ideologicamente de forma que, uma família que não aceita vacinar um filho tornando-o imune a um tipo de morte, pelo menos, pode estar disposta também a tolher a liberdade e a permitir desmandos e crimes a favor de uma ordem mítica. A exploração do imaginário mitológico de quem já é frágil psicológica e/ou socialmente sempre foi uma arma para extorquir das pessoas as suas posses.
Quando desenvolveram uma vacina para a tuberculose, dizia-se que quem a tomasse, nasceria neles úberes de vaca, porque era feita a partir da bactéria atenuada de origem bovina, preconceito que atrasou seu uso.
Estamos avançando em tecnologia, mas retrocedendo em muito do que é humano. Onde isso vai nos levar, eu não sei. Mas é provável que vamos, ou voltar a morrer de doenças quase erradicas ou alvejados pela arma de um maluco empoderado por armamentistas, porque os preconceitos estão todos entrelaçados, e o retorno a um deles pode nos tornar um monstro disforme e louco. Se não policiarmos os nossos preconceitos, teremos que policiar cada vez mais a sociedade. E isso não é bom. É como uma febre. O “mau ar”. A malária.

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