Em 1097 – faz um tempinho já – os cruzados chegaram à cidade de Niceia e a sitiaram. Escaramuça pra cá, escaramuça pra lá, os cristãos venceram os turcos duas vezes. Não vamos pensar, cá entre nós, que as Cruzadas foram somente tentativas de reconquistar a Terra Santa dos infiéis. A Europa, afundada na estagnação econômica, via na guerra com o oriente uma forma de reconquistar mercados. Religião era só uma forma de angariar incautos, mão de obra barata. Tipo mamadeira de piroca. Mesma coisa.
Mas os incautos da época eram potencialmente suicidas. Se era para levar o mundo para a morte, sem problemas. Morriam e levavam consigo quem quer que fosse.
Assim, assediaram Niceia. Mas a cidade em si, sob a proteção de suas muralhas, resistia. As muralhas, claro, representam a vida, tanto a vida biológica como a vida de uma ideia, uma ideia deles, da vida deles. Tipo hoje seria respeito à Constituição, à Justiça, à liberdade individual, ao emprego e à renda. E à aposentaria. Cada época tem seus assédios e suas muralhas.
Como o tempo ia passando e os cruzados não queriam perdê-lo mais, ou dá-lo, o tempo, aos sitiados, o terror começou a comer. Os cruzados – palavra que deriva de cruz – resolveram decapitar os soldados turcos mortos nas refregas e escaramuças iniciais e, através de catapultas, jogaram as cabeças dentro da cidade. Mas de mil cabeças, a grande parte já apodrecidas, choveram sobre a cidade. A cidade apavorada com a barbárie dos latinos cristãos entregou-se, mas não a eles e, sim, aos bizantinos porque acreditou que seriam menos criminosos com seu povo que os cristãos europeus. E foram. Em Niceia, os Cruzados não tiveram butim nem matança indiscriminada de inocentes, como era sua forma de agir.
Porém – e há sempre um porém – estes mesmos Cruzados chegaram no ano seguinte à cidade de Marratan-Numan. E aí, bem, aí foi punk. Atitudes extremas de guerra, como canibalismo, se estenderam por semanas na cidade. A crueldade cruzada em Marratan-Numam foi difundida pela tradição oral e se tornou um mito para os povos da região.
Mil anos depois, os métodos mudaram. Você não precisa mais decapitar mil cabeças e lançá-las sobre seus inimigos para conquistar suas riquezas. Hoje basta você adquirir – e o preço é módico – algumas instituições importantes com poder de decisão, criar uma ilusão de moralidade, decepar os direitos de seus trabalhadores e previdenciários de seus velhos e guilhotinar as vozes políticas de seus verdadeiros patriotas que, enfim, você toma conta de pré-sais, estatais estratégicas, florestas amazônicas e reduz seu povo à semiescravidão.
É verdade que séculos depois os promotores da barbárie chafurdarão na lama da História, mas isso nunca foi uma preocupação dos cruzados nem daqueles que aprimoraram seus métodos. Quem sofreu e foi sodomizado também some nas areias do tempo. A História é só uma velha sem dentes a morder cadáveres.
Por fim, há muitas formas de ser bárbaro e os caras encontram até um jeito de “humanizar” as barbaridades. Enquanto o gado muge e pasta, caminha pelo brete. Tudo é sempre uma cilada; muitas cabeças foram jogadas sobre nós para nos tomarem nossas parcas riquezas. Algumas cabeças nem eram de verdade. Eram fakes. Mas caímos na armadilha igual. Agora, que nos canibalizem. Merecemos!