Queria pedir desculpas

Queria pedir desculpas. Sei, claro, que dependendo do mal feito, um pedido de desculpas é só uma desculpa, dessas que a gente diz para se livrar das culpas. E culpas, cá entre nós, é o que não falta. Às vezes parece que o que acontece nem é de nossa responsabilidade, mas, lá no fundo, bem no fundo, é. A gente é responsável, em algum grau, por tudo que acontece. Do lado da gente ou longe.
Eu queria pedir desculpas a vocês, tão jovens, tão meninos ainda, mas não sei nem se devo ou se posso. É verdade que muito do que acontece no mundo é maior do que gente; está além de nossa capacidade de interferência ou de ação. Mas também é verdade que quando a gente se omite das responsabilidades do que está ao nosso alcance, vendemos esta ideia ao mundo. E a omissão se expande como grandes insetos predadores vomitando nossa apatia. Cada vez que dizemos “não é comigo”, uma parte do mundo desaparece: seja Brumadinho, seja uma espécie animal, sejam abelhas ou crianças numa escola.
Eu queria pedir desculpas por talvez não ter feito nestes meus sessenta anos tudo que pude para que males como esse, tão previsíveis, não viessem a ocorrer sob minhas barbas brancas e meu coração dilacerado. Eu podia ter feito mais. Podia ter feito até ser preso, ou até ser morto. Mas podia. Não fui capaz. Não dos “imprescindíveis” do poema de Brecht. Permiti junto com minha geração a recondução da barbárie aos ambientes mais singelos e inocentes, como uma escola. Apesar de perceber o renascimento da estupidez, do mal, da crueldade gratuita, do linchamento moral de inocentes, quase nada fiz do que me cabia para enfrentar a monstruosidade que está se reconstruindo dia a dia.
Eu queria pedir desculpas por este sangue injustamente derramado, por esta juventude tão precocemente apartada do futuro, da alegria, dos risos e dos prazeres que a vida dá quando oferecemos o melhor dela, as qualidades dela, os talentos dela à sociedade, aos amigos, ao mundo.
Queria pedir desculpas pela minha tristeza não só por vocês, mas também por mim, por minha incapacidade em enfrentar o que o presente exigiu de mim e nós. Muitos de nós nos entregamos ao discurso fácil dos inimigos inventados, dos falsos diabos criados pelos verdadeiros. Espero que nos perdoem também por isso. Nós, adultos, gostamos de brincar de guerra, de andar armados, de destruir o inimigo. Mesmo que esse inimigo de verdade nem exista. Seja só um vizinho, um colega de trabalho, um cidadão de nossa cidade. Muitos estão ávidos por carregar uma morte na consciência. Não queriam levar a de vocês, certamente. Mas todos nós as estamos levando: por omissão, por ingenuidade, por pobreza de espírito.
Por tudo isto, peço perdão a vocês, vítimas dessas nossas escolhas equivocadas, dessa nossa hipocrisia, por permitirmos que seres diabólicos manipulem nossa mente a ponto de concordarmos com decisões que vão nos levar à morte, como levou a de vocês.
Peço perdão a vocês, meninos de Suzano, assassinados a sangue frio por pessoas tão infelizes que escolheram a brutalidade para saírem do vazio em que se encontravam. Tão longe de mim vocês estavam, mas não longe da minha humanidade, o que me exige que eu lhes peça desculpas. Como ao menino Bernardo, enterrado vivo depois de pedir socorro por anos. Ninguém ouviu. Nem eu. Como não estamos ouvindo agora as súplicas surdas de uma sociedade doente, cuja insanidade nos obrigará a pedir ainda mais desculpas.

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