Foi o músico João Rosa quem me falou que a Igreja, na Idade Média, tinha proibido certos acordes musicais por serem considerados desarmônicos. Estes acordes, os trítonos ou diminutos, por sua estrutura, trazem tensão, sensação de movimento e instabilidade a quem ouve. Talvez os padres da época já soubessem que a música, a arte como um todo, são formas de tirar as pessoas de posturas bovinas e obedientes.
Em seguida, Beethoven os usou e, mais tarde, os bluseiros americanos. O acorde virou santo. E ele é lindo mesmo! O preconceito sucumbiu, pra variar, e mais uma ação dissolvente infantil da Igreja foi para o patamar das insignificâncias históricas.
A gente nunca sabe o que a arte vai fazer com a cabeça das pessoas. A gente nunca sabe o que qualquer coisa bonita e diferente vai fazer com a cabeça das pessoas. Então, quem tem o poder, e quer restringir as possibilidades (até porque tudo na vida são possibilidades) faz o que pode. Até encher o saco por causa de uma acorde musical.
Ocorre que – e todo mundo sabe – que a música, desde os primórdios em que só havia marcações batidas em árvores ocas e o grunhir levemente melódico nas tabas de pré-humanos, faz alguma diferença. Seja para seguir a banda de alguma crença, junto com um alucinógeno, seja para, ao contrário, propagar uma revolução na vida e no mundo. A música sempre foi uma seta a cravar um coração. Para o bem ou para o mal.
E sempre conta histórias. Ouvir música é estar numa aldeia, em volta do fogo, ouvindo contos, lendas e aventuras que formam o imaginário dos povos; se deixando levar pela literatura oral que permeou as sociedades mais antigas e que trazemos como frutos de nossa ancestralidade. O passado nunca nos abandona.
Talvez por isso eu possa encaixar outra historinha aqui, esta me contada pelo Leandro Gonçalves. Que é aquele pedaço no qual tu não discrimina o músico ou a música, mas, ao contrário, faz do processo uma maneira de a vida ganhar com ela.
A historinha do Leandro fala do encontro entre João Gilberto e os Novos Baianos: João Gilberto nunca deu pelota para rótulos ou segregação artística. Na sua visão de príncipe da nossa música, todos eram iguais perante aos acordes, à batida de um violão. Ele pegou o seu e foi bater no apartamento dos Novos Baianos, no Rio de Janeiro. Um deles viu aquela figura impecável de gravata pelo postigo e se alarmou. “São os ‘homi, os homi’”, disse desesperado, referindo-se à polícia. Esclarecida a confusão, os pupilos passaram a ouvir o mestre cantar e tocar em meio ao fumacê danado. A partir destes encontros, fizeram o disco “Acabou chorare”, um presente do padrinho João Gilberto, o grande disco de Morais Moreira, Pepeu Gomes e sua trupe.
A música e sua história são uma aula de vida. Trouxe duas das milhões que existem. Estão na rede, mas não as conhecia. O João e o Leandro me contaram. É provável que cada leitor saiba mais um caminhão delas.
Mas, enfim, há uma moral da história: ou tu entra na vida dos outros para lhes tirar a música, ou tu entra para melodiá-las ainda mais. É uma escolha tua. Melodiar a vida de alguém é muito bacana. Há, claro, quem não o mereça. Mas daí a cortar da vida dela os acordes tensos, os trítonos, também não é legal. Deixemos que se deliciem com acordes do Diabo. Hão de lhes fazer bem.