O ódio em alto relevo

Nestes tempos de intolerância e ódio gratuitos entre as pessoas, é de lembrar-se de uma expressão que apaixonou os nazistas, destruidores por natureza que eram: a palavra alemã Götterdämmerung, ou o Crepúsculo dos Deuses. Como não existem mais deuses, há beleza na destruição. Não há contas a ajustar. A nova era só pode ser construída sobre os escombros da anterior. A tática de despertar o ódio por um inimigo que sequer o é, seguido da liberação da culpa, deu muito certo lá enquanto durou.
Esta parece ter sido a interpretação nazista para a obra “O crepúsculo dos deuses”, de Richard Wagner, obra baseada nas lendas nórdicas onde os deuses são sim destruídos, mas pelo amor. Na estreia da ópera, em 1876, estavam na plateia o rei da França, o imperador alemão, o filósofo Nietzsche, o compositor Liszt e o escritor russo Leon Tolstoi. Um baita time. E claro também que Wagner não tem culpa por sua obra inspirar um holocausto e uma ideia homicida de sociedade.
Gengis Khan foi um mongol que conquistou meio mundo. Impiedoso, também via beleza na carnificina. Numa cidade persa chamada Nichapur, nem os animais sobreviveram à fúria de Khan. A História conta que seus exércitos mataram um milhão de persas. Uma de suas frases mais famosas “venha e beba comigo do copo da destruição” é um resumo perfeito de como o ódio em alto relevo transforma-se num rastilho de pólvora a consumir vidas e sonhos de liberdade.
Quando o frei Vicente de Valverde foi, a mando de Pizarro, falar com o imperador Inca Ataualpa, foi com uma cruz em uma das mãos e a Bíblia na outra. Disse-lhe que, em nome de Deus e do rei da Espanha, ele deveria se submeter à lei de Jesus Cristo e de Sua Majestade. Ataualpa pediu o livro. Abriu-o com desdém e depois o jogou longe. O frei, rubro de ódio, disse a Pizarro: “Invistam contra estes cães que rejeitam Deus. Marchem contra eles que eu os absolvo”. E sem culpa e a quem prestar contas, pois estavam absolvidos de antemão, foram à barbárie.
A consequência deste ódio em alto relevo todo mundo sabe: o dizimar de um povo que se estende até hoje. E como se sabe, não foi a porra do índio que jogou um livro longe que moveu a mão que empunhava a espada contra sua etnia, sua cultura e suas terras. Foi, isto sim, a porra dos minérios.
Exemplos de ódio em alto relevo não faltam nem no passado distante, no passado próximo ou no presente. É só olhar para trás ou olhar em volta. Temos hiatos de tolerância, de respeito, de convivência pacífica. Mas vira e mexe as pessoas soltam seus monstros. Em busca de um bode expiatório para apontar o dedo e justificar medos, fracassos pessoais e más intenções, inventam bodes os mais estúpidos.
Acreditar na paz como forma de associação da sociedade para sua sobrevivência e desenvolvimento; crer que a terra arrasada é uma forma de morte e que toda morte é uma oportunidade perdida para o aperfeiçoamento da humanidade, são formas de pensar que podem preservar o futuro e deixar aos filhos um mundo mais justo e pacífico. E quanto mais justo, mais chances de ser pacífico.

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