Se você acordar um dia e perceber que o mundo não é mais o mesmo; que as matas estão incendiando, os rios morrendo, a terra ressecando, não perca a sua humanidade.
Se você vir as pessoas plantando ódio, a intolerância e o preconceito como forma de galgar degraus sociais e políticos; se você notar a mentira sufocando a verdade e a multidão insuflada por uma injustiça destruindo inocentes, ainda assim, não perca a sua humanidade.
Se você constatar que familiares e entes queridos, que você até admirava, entregaram-se ao discurso fácil de que a violência do Estado é uma resposta civilizada à barbárie de uma sociedade onde a lei é seletiva e a distribuição das riquezas uma falácia, mesmo assim, não perca a sua humanidade.
Se você perceber que o Estado abandona à própria sorte a maioria das pessoas, e depois as pune por reagirem, mesmo assim, não perca a sua humanidade. Mesmo que você saiba que a falta de perspectivas, de futuro, a falta de escola e trabalho são atitudes criminosas praticadas pelo Poder Público, mesmo assim, não comemore a morte. Não perca a sua humanidade.
Se você, num rasgo de tristeza e desesperança, chegar à conclusão de que a mesma sociedade que pune a revolta dos pobres e brada contra o tráfico dos pequenos traficantes, se omite quando a revolta parte dos poderosos e vira golpe de estado, acha lícito o lucro fruto da usura, esconde as taras dos abastados e manipula a Justiça quando ela chega perto dos grandes criminosos como as milícias cariocas, ainda assim, não perca a sua humanidade.
Se, um dia, sem qualquer aviso, você descobrir a hipocrisia do seu representante, que não consegue casar discurso com prática, e sua prática é um discurso obscurantista; que seu representante transforma a democracia numa prostituta com seu voto, coisa que seu voto não delegou a ele, mesmo assim, não perca a sua humanidade.
Se lhe tiram direitos, valores, bens; se confiscam suas melhores intenções para transformá-las em cavalos de uma batalha insana em favor da promiscuidade entre o legal e o ilegal; se lhe exigem que cada vez você trabalhe mais por menor remuneração, que você se sacrifique ainda mais pela pátria que eles expoliam, mesmo assim, não perca a sua humanidade.
Se o culpam pela crise que você não criou, posto que a única coisa que fez na vida foi trabalhar e pagar impostos; se lhe dizem que o que fazem, o fazem por você e você enxergar a dissimulação, a empáfia, o sorriso cínico disfarçando o embuste, ainda assim, não perca a sua humanidade.
Portanto, se lhe exigirem submissão cega; se lhe ordenarem odiar seu vizinho por suas convicções e opções pessoais; se o convocarem para, com a força do grito e da intimidação, da histeria coletiva, extirpar a liberdade alheia, não aceite. Mantenha uma pequena chama acesa em sua frágil choupana, mesmo que cercado de corvos. Alimente-a com o oxigênio puro da paz. Ofereça ao seu coração sua breve luz. Aceite a diversidade como riqueza da alma; mesmo que a humanidade que o cerca não mereça a sua, não a perca.
Se, contudo, você, por fraqueza, medo ou necessidade de um inimigo, perdê-la; e, apesar de tê-la perdido, você achar que vale à pena reencontrá-la, nunca é tarde. Ela está atirada por aí, doente e maltrapilha. E só você pode encontrá-la. Ela é sua e é única. Ninguém, nunca, poderá dar-lhe outra.