Heróis anônimos não faltam. Bombeiros que vão além do que recomenda o bom senso, médicos e membros da defesa civil, que se arriscam em epidemias e catástrofes. E outros que se doam para a sociedade, para o próximo, sem esperar mais reconhecimentos do que a paz de sua própria alma. Aquele que, do nada, sem uma instituição por trás, sem ser pago, faz o bem por estes chamados humanos arrasadores que vêm de dentro; que toma decisões humanistas sob extremo perigo que, em última instância, poderia até lhes custar a vida, eis o grande herói anônimo.
A humanidade é um fio tênue que eles não entregam ao mal sem resistência. Pelo contrário, fortalecem-no tentando transformá-lo numa corrente com elos inquebrantáveis.
Resta a nós, os fracos, revivê-los nos momentos em que a sociedade volta a flertar com ideia de que barbárie se combate com barbárie; de que o mal se combate com um mal maior; de que o Estado deve ser tão vil, incivilizado e violento quanto a bandidagem. Nestes momentos em que execrar, humilhar, apartar as pessoas da sua dignidade, divulgar mentiras como método de jogar as pessoas umas contra as outras, dividir a sociedade para dominá-la, estão no cardápio oficial, talvez seja o momento de dignificar quem foi justo, humano e carinhoso.
Nestes tempos em que as matilhas virtuais substituíram os cães de guerra reais (por enquanto), mostrar exemplos de pessoas que não se deixaram levar pelo grito histérico de malucos e, contra todas as possibilidades, decidiram salvar vidas e não destruí-las, é edificante. Ser gente é uma arte, ainda mais quando tudo nos empurra a não ser.
Há pouco, li um artigo sobre uma enfermeira polonesa, Irena Sendler, que salvou centenas de vidas naquele que foi um dos grandes atos de desumanidade da segunda guerra, o gueto de Varsóvia. O gueto, criado pelos nazistas, chegou a ter 400 mil pessoas encarceradas nele. Irena Sendler resolveu que sua humanidade era maior que a guerra e se pôs a salvar crianças daquele inferno.
“As crianças foram retiradas do gueto de várias maneiras. Dentro de sacos, caixas de ferramentas, latas de lixo, ambulâncias, através de túneis, da rede de esgoto”. Depois de dormirem, bebês eram levados em mochilas ou malas que eram “esquecidas” em bondes e trens. Conforme li, até em pequenos caixões tiravam crianças vivas do gueto.
Fiquei imaginando a cena literária de um bebê colocado numa mala dentro de um trem, acordando tempos depois, e o imponderável colocando-o no caminho de alguém. Ninguém sabia se sobreviveria, mas pelo menos teria uma chance maior que no gueto. Sem contar a difícil decisão dos pais, que, como hoje, não viam no seu cotidiano o prenúncio trágico da morte.
Quando foi presa, Irena não entregou ninguém. Foi solta mais tarde por corrupção da Gestapo. Não se pense que os nazifascistas de então, como os de hoje, não estavam nessa por dinheiro.
Nestes tempos em que nuvens obscuras ancoram no horizonte como zepelins do armagedon, sob o aplauso de quem ainda não percebeu a arapuca miliciana, é bom lembrar o Êxodo: Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem te deixarás arrastar pelo sentimento de maior número para te desviares da verdade.
Irena Sendler foi uma heroína anônima de seu tempo. Despojada, valente, humana. Se tudo desandasse para uma grande ação de injustiças e perseguições, com o fim da democracia e dos direitos fundamentais, quem de nós estaria à altura de uma mulher como Irena Sendler?