Entre dois mundos

Você pensa que é um mundo só. Mas são dois. Há uma película que os separa. Uma cortina de seda que delimita o que é sonho do que é realidade; uma fronteira frágil e desguarnecida que nos assopra: lá, o melhor dos mundos. No lado de cá, a realidade. A vida é singrar nesta fronteira.
O lado A é onde nos encontramos, onde eu e tu vivemos juntos. No lado B moram as vontades, os desejos, teu amor por mim e o meu por ti. Teu carinho e as palavras com que afago tua alma. Às vezes abrimos a cortina e nossa realidade se impregna do teu perfume e minhas águas regam teu jardim. Mas não quer dizer que atravessamos a fronteira. A realidade ainda será uma tempestade a assolar nossos melhores canteiros.
Nossa ousadia ao outro lado se dá em pequenos passos. Quando lemos um bom livro, quando ouvimos música, quando um beijo molhado salva o dia, quando o amor salva a vida. Mas depois do livro, depois da música, depois do beijo, depois da vida salva, a vida continua, talvez salva, mas ainda uma vida separada em duas por uma cortina de seda.
Somos caçadores de emoções. Caçamos como quem caça alimento. Às vezes, num rompante, invadimos o lado B como um guerreiro que quer conquistar um território. O que talvez seja um erro. Se as chamássemos para alimentarem-se conosco; se dividíssemos nossa mesa com elas, poderíamos ter um resultado mais duradouro.Contudo, arrebatados de paixão e desejo, preferimos declarar-lhes guerra e exigir dos sentimentos mais do que eles podem nos dar. É quando eles rasgam a cortina e nos avassalam com seu peso, sua intensidade e nos embriagam deles, de amor, de ódio, de aflição, de medo até perdermos a consciência da realidade e cometermos um desatino.
Se os tocarmos com violência, se lhes dissermos palavras impróprias, se menosprezarmos sua paz e sua dignidade, eles nos levam para seus labirintos onde nos perdemos deles e de nós mesmos até que a loucura e a tristeza restem como nosso único e desgraçado mundo.
Cada sonho alimenta a realidade de encontrá-lo. Cada utopia que nos espera no lado B da cortina depende de uma decisão sóbria do lado A para construí-la.Quando dá tudo certo, os dois mundos se misturam e o amor, o sexo, a música, a imaginação são robustos e capazes de grandes aventuras sentimentais. Porém, se juntam realidades e sentimentos menores, a aventura logo afunda torpedeada por um amor vulgar, um livro ruim, uma música gritada e com uma poesia baixa. Se somos capazes somente de barcos frágeis, melhor não investir em grandes singraduras.
Por fim, o sonho e a realidade, a vontade e a possibilidade, o sentimento e a frieza, estes gêmeos siameses que, por sua lutas intestinas não permitem nunca que sejamos um só. Como metáfora desta dualidade, podemos dizer que são dois continentes separados por um só mar – a cortina. Se escolhemos o norte, perdemos o sul, e vice-versa. Nossa sina é inventar um barco que navegue em ambas as direções ao mesmo tempo. Como não o inventaremos, é essa coisa de perder um mundo, ou perder outro. É por essa falta de direção que acabamos por perdermos os dois.

Últimas Notícias

Destaques