Pare! Não leia esta crônica agora. Espere para lê-la depois do ódio.
Depois do ódio, quando retornar a fantasia, quando a Democracia deixar de ser uma mentira pregada por torturadores. Não a leia agora. A poesia se houver; uma beleza fugaz. Leve para casa sem ler. Guarde. Deixe para depois do ódio.
Deixe para ler quando tudo brilhar novamente, porque gente é pra brilhar, cantava Maiakovski. Há beija-flores que sobrevoam suas palavras. E flores que pendem delas, despertando a fome dos passarinhos. Mas enquanto se mantem o ódio, as flores secam e os pássaros fogem. Por isso, espere o ódio passar.
Não vá tomar sol nas praças. Nem leve as crianças para correrem na grama verde. Não há grama verde. Nem jardins floridos. Nem sol. Nas praças, há um cinza eterno e o frio do ódio. Eu estive lá. Eu vi.
Não discuta. Não diga o que pensa. Há cruzes vazias fincadas no chão. Cada uma à espera de um corpo. E toda a espécie de gente com os martelos e os pregos do ódio em riste.
Não é momento de sorrir. Guarde sua alegria a sete chaves. Tampouco deixe que percebam que você é feliz. Ou que foi. Deixe tudo para depois do ódio. Não admire ninguém. Toda admiração poderá ser usada contra você na exceção de futuros tribunais.
E se você não odeia, se recicle. A solidariedade, o poder político em favor da maioria e dos mais necessitados não vingou. Agora é hora do Apartheid. Apartar quem é bom de quem é ruim. Porém, o ódio é que está definindo quem é bom e quem é ruim. Acabaram-se as pontes. Restaram os muros. Os navios que nos ligavam uns aos outros foram incendiados e cada ilha é um bunker. A guerra entre nós mesmos é nosso elemento.
Estávamos pouco a pouco construindo a ideia de que, antes de tudo, todos éramos pessoas, gente. Mas o ódio venceu e agora somos todos, outra vez, inimigos, despedaçando o coração uns dos outros.
Pelo que estou vendo, você continua lendo esta crônica. Mas eu insisto: deixe para ler depois do ódio. Depois do ódio, ela será somente um amontoado de palavras sem sentido que você poderá jogar fora para afirmar que nada disso retornará. Mas, enquanto isso, permaneça inocente. Deixe que paguem os criminosos pelo delito de opinião, os poetas, os loucos sem sociedade e sem sistemas e outras vítimas gratuitas dos plantonistas do ódio.
Esta crônica, com suas desvirtudes, é para ser lida depois do ódio, para quando não acreditarmos que houve este tempo, para quando julgarmos a maldade gratuita uma coisa inacreditável, que não aconteceu. Apesar de ter acontecido.
O Brasil é hoje a nau dos insensatos, que navega carregando o ódio na bandeira e dando visibilidade a pequenos títeres que tentam usar a Democracia como degrau e justificativa para atrocidades. Nem podemos dizer: No passarán!, até porque já passaram. Deitados numa liteira como deuses carregados pelo ódio de fanáticos.
Esta crônica é para depois do ódio. Para que ela não o fomente. Ela é só uma denúncia surda e cega. O espelho de um eco. Porque o ódio não pode ser instrumento da Democracia. Nem justificar sua liberdade de agir por ela. O ódio é o ódio. A Democracia é ela e outra coisa diferente dele.
Temo que você tenha lido esta crônica até aqui. Se não, que bom. Se sim, não deveria ter feito. Devia ter deixado para depois do ódio.
Por outro lado, talvez o ódio acabe em novos fornos crematórios. E que, talvez, se você não a lesse agora, não a leria nunca mais.
*Título baseado no álbum musical “Canções para depois do ódio”, de Marcelo Yuca