Era na mesa do jantar que os conflitos se davam. O Abreu e o Betinho não tinham nada em comum. Nada, não. O cabelo lambidão, escorrido, era o mesmo. O nariz adunco, o gosto por cavalos e cavalgadas. No mais, nada. O Abreu era alto e fortão. O Betinho, um risco e um finisco; o Abreu gostava de cachaça, Betinho de Stella. Abreu, vanerão; Betinho, milonga. Abreu, carpeta. Betinho, violão. A hora do jantar, a de aparar diferenças.
– Bah, mataram aquela comunista no Rio. Vamofazê a limpa – disse o Abreu, esfregando as mãos, excitado.
– Ô pai! – disse Betinho indignado. – Que comunista. Era uma mulher negra que lutava pelos que não têm voz. Nazista!
Abreu olhou para a mulher. Dona Rô não lhe deu bola.
– Me respeita, guri! Essa mulher defendia bandido.
– Notícia falsa, pai. Ela denunciou a polícia bandida. Por isso morreu.
– Ah – e enfiou um naco de comida na boca – por isso que eu digo. Temos que nos armar. As pessoas de bem têm que se defender de bandidos.
– Pessoas de bem? Tem uns caras aí com quem o senhor anda… de honestos não têm nada. Uns até respondem processo por roubo e outras falcatruas. –“Pessoas de bem” – e riu debochado.
Abreu olhou para a mulher de novo. O guri tava exagerando. “Olha piá, nós temos que eleger um militar pra botar ordem nesta esculhambação. Armar o povo e mandar a boiolada esquerdista para Cuba”.
Betinho pôs as mãos na cabeça e depois empurrou o prato. “Não acredito que ouvi isso. Ô mãe, dá um jeito neste homem”. Dona Rô só levantou a mão e disse: come meu filho, não dá bola pro teu pai. Foi a vez de o Abreu empurrar o prato. – Como é que é?
– Ô pai, pensa comigo: todo mundo armado. Briga de trânsito, vai ter tiro. Desentendimento no futebol, vai ter tiro. Um cara olha pra mãe na rua, tem tiro.
– Ah, eu atiro mesmo! – brincou o Abreu. Mas a conversa, para Betinho, não era de brincadeira. O pai notou e remendou. – Arma pra atirar em bandido, só em bandido.
– Pai, como tu vai saber quem é bandido?Tu não é polícia, tu não é juiz. E quem quer levar a morte de alguém pra vida toda? Carregar, talvez, uma injustiça nas costas? Eu não! Só o Estado pode tirar uma vida. Ainda assim, no confronto direto. Pena de morte, só se estiver na Constituição. Pai, o Estado não pode ser bárbaro, e nem nós, cidadãos.
– A sociedade ficou bárbara e…
– Porque escolhemos mal os governos. Se todo mundo se armar, vai ser uma guerra pior que a de hoje. O que o governo quer é o caos. Pra roubar mais.
Abreu reclamou com Dona Rô. – Esse guri tá me saindo um esquerdinha dos “ruim”!
Na noite seguinte, Betinho foi num show de música na beira do rio. Ele e a Clarice, uma menina com quem tava flertando. Chegou a polícia e encontrou um cigarro de maconha com Betinho. Na delegacia, o pai da Clarice o acusou de levar a filha ao submundo das drogas e do crime. Na discussão, Betinho disse: – O que é uma ponta de maconha comparada ao desfalque que o senhor deu na Prefeitura? – Antes que alguém pudesse agir, um tiro ecoou.
No hospital, Betinho conseguiu dizer: – Ele atirou em mim por crimes que ele cometeu.
Depois do enterro, Dona Rô abandonou Abreu. Ele nem deu bola. Nem teve coragem de encarar o matador de seu filho. Deixou tudo por isso mesmo. Colou um adesivo de outro assassino no vidro do carro. Estava a fim de ser vítima também de seu futuro presidente. Queria que sua estupidez e seu ódio fossem também a estupidez e o ódio de todo o país.