Era uma vez um monstro. Vinha dos pântanos e invadiu uma aldeia. No princípio, quase ninguém o notava. As monstruosidades que cometia mais beiravam o hilário e o ridículo. Seriedade zero! Folclórico e extravagante, era mais um fanfarrão que um ogro a ser temido.
Com o tempo, contudo, aconteceu algo inusitado. De vez em quando, dependendo do que o mostro fazia ou dizia, seu rosto, que era de um barro nojento, ficava idêntico ao do aldeão de bem que o observava. Quando se prestava atenção nas iniquidades do monstro, alguns, surpreendentemente, viam-se a si mesmo na face do monstro.
As maldades que cometia, ele que tinha a face de cada aldeão que o admirava, foram ganhando simpatias – principalmente dos aldeões de bem – e essas maldades passaram a se justificar porque cada aldeão acabava se orgulhando delas como se as tivesse cometido ele próprio. Logo as políticas de ódio do monstro se tornaram populares. Moradores de rua foram incendiados, indígenas e minorias massacradas, aldeãs de bem, ou não, agredidas e mortas por ciúmes ou por desejo. O monstro culpava as vítimas pelos desastres na história da aldeia. O que era crime ele chamava justiça. E assim acabou o remorso.
Como cada uma via seu rosto como sendo o do monstro, começaram também a ver alma na alma dele. As maldades que todos queriam cometer, mas eram impedidos por valores que freavam o prazer pelo perverso, o monstro liberou e desculpou.
Foi como a Justiça se transformou num poder persecutório e seletivo, a polícia numa entidade de extermínio e o governo num criador de conflitos e não num mediador deles.
O lado mau e ressentido dos aldeões tomou viço, tendo o monstro como líder. O caráter pacífico da aldeia virou beligerante. O monstro tornara-se face e alma dos aldeões. Todos eram o monstro e o monstro era todos.
A ação deletéria do monstro pode, enfim, impor sua doutrina de terra arrasada, pondo ao chão a pequena escola da aldeia, envenenando seu rio, derrubando suas matas e convencendo os aldeões a aceitarem um regime de semiescravidão ao entregá-los, sem leis que os protegessem, às aldeias mais poderosas e às milícias. Ainda assim, os aldeões de bem não notavam que o que antes incentivaram contra seus desafetos se voltava contra eles. Cegos, mas sem inocência, tornavam-se vítimas da própria idolatria.
Então, numa manhã, aconteceu algo ainda mais estranho. Os aldeões acordaram com pequenas manchas e ranhuras nos rostos. Passavam a mão, olhavam uns para os outros assustados sem entender o que se passava. À medida que corriam os dias, mais ranhuras e mais manchas e até uma certa umidade enlameada amanheceu junto. As ranhuras e manchas acabavam com as diferenças e pareciam igualar todos numa mesma doentia deformidade e cada um perdia sua identidade pessoal. Não se reconheciam mais.
Apavorados, procuraram o monstro para saber o que estava havendo. Então, não se viram mais na face dele. Viram, isto sim, que seus rostos antigos não mais existiam. Eram iguais ao do monstro: mutante, disforme e lodoso! Os aldeões de bem temeram que a metamorfose e as deformações também se tivessem dado em suas almas, já que as haviam dividido com o monstro.
Não puderam ver ainda, mas alguns, uns poucos, cabisbaixos e doentes de barbárie e ódio, perceberam: não há remédio e é tarde demais.