“Flor de ir embora é flor que se alimenta do que a gente chora
e lá vou eu, e lá vou eu flor de ir embora, agora este mundo é meu!”
Maria Bethânia
Há, pelo menos, duas maneira de ir embora. Uma que a gente vai regando a flor aos poucos, “amadurecendo a partida”. Outra que a gente some, simplesmente, meio como morrer deixando tudo pra trás, sem planos, sem levar em conta consequências. Estou cuidando de ir embora como quem cuida de uma flor. Já semeei. Estou esperando os brotinhos nascerem e protegê-los do sol forte, do vento e dos gatos que adoram revolver a terra.
Nem sempre são tristes as partidas. Pode inclusive ser construída a dois, cada um cuidando de uma pétala como se fora a flor inteira.
Regar uma flor contempla muitas maneiras de ir embora. Não é só abandonar pessoas ou lugares. Às vezes, vamos embora de nós mesmos, de um modo de pensar, de agir. Abandonar uma época, atitudes, maneiras de ser. Ir embora pode ser deixar a alma para trás, entregue à própria sorte.
Não vai embora quem tem pena ou remorso. Ir embora é um ato individualista. Quando a flor de ir embora amadurece, sabemos que é partir ou continuar infeliz. Ir embora é determinar que o resto se exploda! Quando se joga a semente na terra, é porque a flor de ir embora já está madura dentro da gente. Um ato sem retorno. A concessão que a flor de ir embora permite, e que nos alimenta de uma alegria insana, é que pouco restará depois que sua fragrância inundar de novos desejos nossos olhos e nossos passos.
A flor de ir embora não nos liberta do passado. Antes, traz novas encruzilhadas e abismos. A parte boa dela, a que cheira bem, não dura muito. E muitos desistem e retornam à terra árida da qual partiram. Claro, não foi sempre árida, é verdade. Tempos houve que era a melhor terra do mundo. Fomos felizes ali. Amamos, odiamos, sonhamos e construímos quase uma vida inteira. Porém nada é inteiro para sempre e naturalmente a ressecamos, queimamos, sugamos até sua fertilidade sumir por entre nossos desejos. E já não pode mais dar flor alguma que não a flor de ir embora.
Estou cuidando da flor de ir embora como quem cuida de uma flor muito frágil, de um colorido fantástico, mas tão efêmera que secará assim que eu partir. Não precisarei mais dela nem ela de mim. Não sentiremos a falta um do outro. Só a cuidei para que sua exuberância me dissesse que eu era capaz. A flor de ir embora só vive enquanto eu não partir.
Sempre há, pelo menos, dois mundos quando se parte. O que fica e o que nos espera lá adiante. É uma troca: do certo pelo incerto. Um de mata verdejante e água fresca. Outro, um deserto. Mas quando semeamos a flor de ir embora, não sabemos mais qual é qual.
Quem já foi embora de sua alma uma vez sabe estar repleto das esperanças e das angústias da partida. Pouco sabe de monstros ou de paraísos. Sabe somente que a flor de ir embora abriu suas pétalas como se fossem asas e disse: vai!
Já fomos embora de nossos sonhos de infância, dos sonhos da adolescência. A vida é um eterno desistir de si mesmo. É como o tempo, que vai indo embora da vida. Todos que envelhecem estão regando a flor de ir embora. Não tem como resistir. Somos obrigados a içar velas, a soltar amarras, mesmo perdendo pedaços nas águas turbulentas.
É tipo um último suspiro. Tudo porque viver é mais importante do que ficar.