Descobrir que tem uma doença grave é algo capaz de deixar qualquer pessoa em choque. Dúvidas sobre as possibilidades de tratamento e chances de cura não saem do pensamento e a pessoa se vê numa situação limite. Quando o acesso ao tratamento é difícil, a situação se torna ainda mais tensa. Foi assim com Igor Soares, de apenas 22 anos. O estudante de Educação Física e morador de Harmonia, no Vale do Caí, percebeu um caroço no pescoço e descobriu tratar-se de um Linfoma – nome dado a um conjunto de cânceres que atacam o sistema linfático, responsável por ajudar a combater infecções – e buscou por tratamento pelo Sistema Único de Saúde.
Agora já em tratamento, nas redes sociais e ao Jornal Ibiá, Igor relatou ter tido dificuldade para receber atendimento com a rapidez que um caso de câncer exige. O problema esteve na demora entre a confirmação da doença e o encaminhamento aos hospitais de Porto Alegre. “Nenhum possuía vaga no momento”, conta. Com o diagnóstico confirmado em 5 de novembro, apenas em meados de dezembro o tratamento teve início. Muito tempo para quem corre risco de vida, sem ter a possibilidade de acessar um serviço particular. “Tentei tudo pelo SUS, pois um tratamento particular sai por R$ 300 mil”, explica ele.
Assim como Igor, grande parte da população do Vale do Caí não teria condições de bancar um tratamento oncológico de forma particular e depende do sistema público. Até o início de dezembro, pelo SUS, em 2019, foram realizadas 816 cirurgias oncológicas em pacientes do Vale do Caí nas cidades de São Leopoldo, Canoas e Porto Alegre. A forma como esses encaminhamentos ocorrem muda conforme o diagnóstico, mas a porta de entrada são as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e as Equipes de Saúde da Família (ESF), que integram a chamada Atenção Básica em Saúde.
A secretaria estadual da Saúde do Rio Grande do Sul (SES/RS) explica que, caso a avaliação médica nas UBSs e ESFs indique a necessidade de consulta com um especialista em oncologia (ou de outra especialidade), a Secretaria Municipal de Saúde da cidade é acionada para agendar atendimento em serviço próprio ou em município de referência. No caso de Montenegro e outras cidades do Vale do Caí, as referências para oncologia são o Hospital Centenário, de São Leopoldo (quimioterapia, radioterapia, cabeça e pescoço, bucal e torácico); unidades de Canoas (cânceres do sistema nervoso central) e de Porto Alegre (pediátrico, hematológicos, braquiterapia, cânceres raros como oftalmológicos, primários de ossos, sarcomas e iodoterapia).
Como não há oferta de quimioterapia e radioterapia em nenhuma cidade do Vale do Caí, os pacientes que necessitam são encaminhados para o Hospital Centenário. Cada município, através de sua secretaria da Saúde, deve providenciar o transporte até a cidade do Vale do Sinos, no horário e frequência necessários ao tratamento, que costuma levar meses, com intervalos regulares nas aplicações.
O tempo médio de espera para iniciar o tratamento apontado por Igor Soares como um problema é similar à média informada pela SES/RS. Para conseguir consultar pelo SUS com um oncologista (após o encaminhamento na UBS ou ESF) leva em torno de 60 dias nas áreas atendidas em São Leopoldo e 30 dias nas demais cidades de referência. Para conseguir realizar os exames que confirmem o diagnóstico de câncer, a espera costuma ficar entre 30 e 60 dias.
Para fazer efetivamente o tratamento, seja cirúrgico, radioterapia e/ou quimioterapia, o tempo pode variar entre 30 e 60 dias. Sobre o tempo ser longo diante da seriedade das doenças oncológicas, a SES/RS informou que, para atender a demanda da região, o Hospital Centenário está pleiteando junto ao Ministério da Saúde a recomposição do teto da oncologia. Se conseguir, isso possibilitará a realização de mais cirurgias oncológicas e, por consequência, diminuirá o tempo de espera.
Atendimento oncológico de Montenegro em 2019
São Leopoldo
Janeiro – 27
Fevereiro – 18
Março – 33
Abril – 34
Maio – 17
Junho – 13
Julho – 18
Agosto – 16
Setembro – 16
Outubro – 14
Novembro – 24
Dezembro (até dia 16) – 11
Canoas – 2
Porto Alegre – 10
Total: 254 pacientes
Harmoniense está otimista
O Vale do Caí começou a conhecer a história de Igor quando, em choque pelo valor que um tratamento deste tipo teria, ele desabafou nas redes sociais. Alguns acreditaram que ele buscava a colaboração dos amigos para arrecadar o dinheiro necessário para recorrer à rede privada. Mas não, ele jamais teve o objetivo de juntar os R$ 300 mil necessários. Sempre soube que precisava contar com o SUS. Queria apenas que as pessoas soubessem pelo que passava.
Igor Soares conta que tudo começou quando percebeu uma espécie de caroço no pescoço. “Eu iria competir em campeonato de fisiculturismo. Quando comecei a me preparar, descobri o Linfoma. A partir disso, começou uma batalha pelos exames”, relata. Testes de sangue, tomografia com contraste, internação para cirurgia de biópsia e então veio o resultado: um possível linfoma de Hodgkin. “Então mais um exame deveria ser feito, o imuno-histoquímica, quando fiquei internado mais um dia na emergência do Hospital Montenegro”, segue ele. Porém, Igor teve que deixar o HM, já que este não tem recursos para tratamento oncológico. No caso dele, a referência era um hospital de Porto Alegre.
Quando entrou nessa fila de espera, o harmoniense soube que 100 casos estavam na sua frente e havia uma média de 14 pacientes entrando em tratamento ao mês. “Um absurdo porque paciente com câncer não pode esperar, o tratamento deve ser feito com quimioterapia com a finalidade de matar as células cancerígenas dentro dos linfonodos”, relatou Igor. Era final de novembro e ele temia que a doença tivesse evolução sem que efetivamente fizesse qualquer coisa para se curar. “Estou no estágio III, mas a qualquer momento já pode atacar, segundo informações médicas, outros órgãos, onde dificulta ainda mais o tratamento. O último estágio da doença é o IV, onde ataca ossos, fígado, cérebro e medula óssea, diminuindo as chances de cura em 50%”, dizia ele, mostrando preocupação.
No mês de dezembro, Igor começou seu tratamento, de quimioterapia, no Hospital Conceição, em Porto Alegre. São seis ciclos, aplicados a cada 15 dias. Apesar das dificuldades, ele está confiante de que terá um 2020 de recuperação, já que está reagindo bem ao tratamento. “É um prognóstico de um linfoma de alta cura”, diz, esperançoso. Ele recebe transporte de Harmonia até oConceição. Esta etapa do tratamento segue até maio.
“Sou muito grata ao SUS”
Se há dificuldades de acesso ao tratamento, também existem relatos de sucesso e gratidão. É o caso de Solange de Oliveira Vargas, de 62 anos. Essa montenegrina é uma vitoriosa. Derrotou o câncer de mama descoberto em dezembro de 2014. Fez todo o tratamento e segue o acompanhamento pelo Sistema Único de Saúde. E ela garante que, desde que soube da existência da doença, jamais se sentiu insegura por depender da rede pública.
Solange chegou a ter plano de saúde privado, mas, meses antes do diagnóstico, o havia cancelado. A costureira, apaixonada pela profissão, concluía aquele ano de muito trabalho, pensava nas férias e na praia que a aguardava quando, no autoexame, percebeu o caroço na mama. Já tendo outros casos na família, preocupou-se, mas manteve a calma e resolveu que teria suas férias no litoral e então correria atrás de tratamento. Ainda em janeiro, ligou para a Secretaria Municipal da Saúde e agendou uma consulta com clínico; ele solicitou exames que demonstraram necessidade do acompanhamento especializado. Logo, ela foi encaminhada para Porto Alegre, ao Hospital Fêmina (hoje a referência é São Leopoldo, no Hospital Centenário).
O tratamento do câncer de mama não é fácil. Tem seus percalços e dificuldades. Mas Solange sentiu-se acolhida e bem atendida o tempo todo. Em abril, ela passou por diversos dias de internação devido a um tratamento necessário antes de realizar as sessões de quimioterapia. A primeira aplicação ocorreu em 2 de maio e assim elas seguiram, a cada 21 dias, até o dia 21 de agosto. Por estar muito debilitada, Solange não precisava ir na SMS para pegar o transporte, que a buscava em casa. “Saíamos ao meio-dia e voltávamos às 19h. São quatro horas aplicando. Não posso me queixar de nenhum mal-estar pela quimio”, conta ela.
Em 13 de outubro de 2015, a montenegrina fez a cirurgia de retirada de uma das mamas, seguida das sessões de radioterapia, de 21 de dezembro até 1º de fevereiro, realizadas em São Leopoldo. Para evitar complicações futuras, ela decidiu, em 2017, retirar também a outra mama. Está curada ou, como se costuma dizer nesses casos, “negativa para medicação”. Um alívio depois de tanto esforço. A reconstituição das mamas não ocorreu por escolha própria. “Eu não quis, preferi assim. A regra é que, a mulher desejando, reconstituam até dois anos depois”, conta Solange.
A cada seis meses a costureira segue fazendo consultas em Porto Alegre, onde diz ter criado vínculo com os profissionais que a atendem. “Sou muito grata ao SUS pelo que me ofereceu. Não posso falar de outros casos, mas no meu foi nota 10 em tudo, desde o encaminhamento até o transporte, as consultas, cirurgia. Não tenho do que me queixar”, finaliza Solange.
Em Montenegro, secretária garante que espera não é longa
A situação dos atendimentos oncológicos em Montenegro é considerada boa pela secretária municipal de Saúde Cristina Reinheimer. Segundo ela, a espera diminuiu do último ano para cá. “É um paciente que me preocupa muito. Assim que recebemos um diagnóstico, encaminhamos para a secretaria do Estado e insistimos ao telefone para a rápida marcação especializada. Havia fila longa, hoje não mais. Nos preocupamos para que esse encaminhamento não ocorra já tarde. Tem que correr”, destaca Cristina.
Para quimioterapia, por exemplo, o paciente espera até 20 dias. “Não era assim, tínhamos filas enormes”, reconhece a secretária. Assim como a radioterapia, a quimio é aplicada no Hospital Centenário, em São Leopoldo, com o paciente recebendo da Secretaria Municipal da Saúde o transporte. Para cirurgia, a espera é de aproximadamente 60 dias. No dia em que Cristina Reinheimer recebeu a reportagem, seis montenegrinos aguardavam por cirurgia oncológica, quatro por quimioterapia e um por radioterapia. Questionada sobre se considera adequada a oferta de vagas nessa especialidade médica, Cristina diz que atualmente, sim. “Hoje sim, considero. Há agilidade na marcação. Com a gente insistentemente acompanhando. É uma fila única, conforme demanda. Eu não tenho um número de vagas por mês, eu solicito o que eu preciso”, detalha a responsável pela saúde pública em Montenegro.
O atendimento começa pela rede básica, pela enfermagem e consulta com médico da UBS ou ESF. “Se há uma desconfiança, é pedido exame. Alguns são feitos aqui em Montenegro mesmo”, diz Cristina. Se há desconfiança de câncer de próstata, por exemplo, é pedido um PSA e, havendo alteração é pedida uma biópsia guiada por eco. Se for um nódulo de mama, é pedida mamografia e eco mamária, se necessário ainda a biópsia guiada por eco de mama. No caso de manchas de pele, caso seja possível, ela é retirada ou queimada aqui mesmo, com o aparelho de crioterapia em Montenegro. Há casos que são encaminhados para São Leopoldo. Já um caso de leucemia é encaminhado para Porto Alegre após exames de sangue e se a tomografia indicar a necessidade.
Confirmado o câncer de acordo com os exames da área específica, o paciente segue para o médico especialista. Leucemia, em Porto Alegre; Neurologia, em Canoas; os demais em São Leopoldo. Há casos específicos em que São Leopoldo não pode atender e retorna para ser encaminhado para Porto Alegre. Todo esse trâmite de marcações é com a Secretaria Municipal de Saúde. Assim como a marcação de transporte que leva para consulta, radioterapia e quimioterapia em outra cidade. O paciente marca o procedimento e vai ao setor de remoções, onde reserva o transporte.
Passado todo o tratamento, o paciente seguirá sendo acompanhado pela Unidade Básica de saúde e tem agendamentos com o especialista, cuja frequência é diferente em cada tipo de câncer. Por exemplo, pessoas que se curaram do câncer de intestino, a cada seis meses fazem uma colonoscopia. Tudo marcado pelo hospital através da Secretaria Municipal de Saúde, que avisa ao paciente. O Hospital Montenegro não atende oncologia, mas acaba atendendo casos de urgência. “Por exemplo, um paciente que deu entrada por obstrução intestinal. Vai para uma cirurgia urgente, abre e encontra um tumor. Retira o tumor, faz biópsia e depois encaminha para a sequência no tratamento. Então, nas urgências, o HM faz o atendimento”, explica Cristina. Há uma solicitação para que, no futuro, haja atendimento oncológico no HM, pelo menos os de mama, mas falta resposta do Estado.