Índices cresceram 111,5% nos últimos dez anos no RS, trazendo preocupação ao interEm 2019, Santa Bárbara do Sul, no noroeste do Estado, ganhou manchetes pelos efeitos do tráfico de drogas: a ferrovia que antes levava progresso ao município agora era a linha divisória entre duas células de uma mesma facção. Em outubro do ano passado, a manhã de localidades como Rodeio Bonito, Erval Seco e Cristal do Sul foi interrompida por uma operação contra o tráfico na região Norte, levando à prisão de 20 pessoas.
Se antes os municípios do interior representavam uma sensação de tranquilidade, hoje o medo da violência se tornou parte da rotina. Efeito do avanço cada vez maior do tráfico de drogas pelo Rio Grande do Sul. Antes na capital e nas cidades polo, hoje, esse comércio se espalha estado afora, a partir de facções que se associam a pequenos grupos para comandar a venda de entorpecentes, como mostram os dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública. Desde 2010, os registros de tráfico aumentaram 111,5% no RS, e os casos de posse de drogas cresceram 36,2%. No mesmo período, esse crime avançou em 174 comunidades — e, somente em 2020, 326 cidades tiveram ao menos um caso desse crime.
Com o tráfico, crescem também os casos de homicídios, furtos e roubos, seja para financiar maconha, crack ou cocaína, conquistar novos territórios ou acerto de contas. Na guerra entre facções, as quadrilhas recrutam novos soldados — muitos deles jovens, levando medo às famílias. Coordenadora pedagógica em uma escola pública na Vila Maringá, em Santa Maria, Silvana Freitas Camargo é testemunha dessa dura realidade. “Infelizmente, para a maioria, escola não é prioridade. E não é porque não querem, mas entram para o tráfico para se manter, até sustentar a família”, lamenta Silvana. Ela repete aos jovens, às vezes em vão: “Vocês são marionetes nas mãos dos grandes. Saiam desse caminho! Tem muita gente por trás ganhando muito”.
Medo compartilhado por quem, diariamente, atua no cuidado de dependentes químicos e seus familiares. O vice-presidente da Federação Brasileira de Amor Exigente, Miguel Tortorelli, relata que a idade média de início do consumo de drogas é cada vez menor. “Hoje, já é de 12 anos. Os traficantes chegam antes dos pais às crianças. Isso é alarmante”, enfatiza. A ONG atende mais de 100 mil pessoas em todo o país.
Se os números mostram o tráfico cada vez mais disseminado pelo Estado, o Executivo gaúcho tem uma explicação: os dados significam uma maior atuação das forças de segurança. “Para enfrentar a interiorização, temos feito ações sistemáticas, com operações para desmantelar esses grupos”, explica o vice-governador e titular da Segurança Pública do RS, delegado Ranolfo Vieira Júnior, que confia no programa RS Seguro para melhorar os índices da área. A iniciativa une diferentes pastas para ações de repressão a diversos crimes, contando ainda com ações de prevenção e atenção social. “2020 foi o melhor ano da década para a segurança, com a menor taxa de homicídios a cada 100 mil habitantes desde 2010, ficando em 17,6. É um avanço significativo”, complementa Ranolfo.
Descriminalização do usuário divide opiniões
Mudanças na legislação que avancem na descriminalização do usuário e façam uma tipificação do traficante são consideradas fundamentais pelo professor da PUCRS Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. “Hoje, isso resulta em prisões de usuários, com quantidades mínimas. E quem realmente comanda toda a rede de drogas não é preso”, afirma, lembrando que a matéria está na pauta do Supremo Tribunal Federal, sem data para votação.
Miguel Tortorelli, da Federação de Amor Exigente, vai no sentido contrário: “Se isso acontecer [a descriminalização], será pior ainda. Teremos muita dificuldade para proteger nossos filhos e netos”. Já o secretário Ranolfo avalia que é preciso “conscientizar, agir e mostrar que quem consome estimula o crime organizado”, defendendo penas mais duras para chefes e líderes de quadrilhas.
Enquanto o tema segue distante de um consenso, a realidade se impõe. É preciso fortalecer o combate ao tráfico, com inteligência e prevenção, seguindo exemplos que estão dando certo. E, assim, mudar a rotina de milhões de gaúchos, que vivem com medo de terem suas vidas e de suas famílias abaladas pelas consequências do tráfico de drogas.
Realidades distintas
Pelo Estado, contudo, encontram-se realidades distintas. Em Bagé, houve um crescimento de 339,3% nos registros de tráfico desde 2010, além de sucessivos aumentos nos últimos três anos. O secretário municipal de Segurança e Mobilidade Urbana, José Carlos Nobre, credita os índices ao aumento da fiscalização. “A Polícia Rodoviária Federal tem batido recordes de apreensão nas estradas federais. Quando fiscaliza mais, tem mais prisões. E isso é positivo”, pontua.
Em Lajeado, no Vale do Taquari, os números são diferentes: em 2019 e 2020, houve quedas de 12,7% e 20,9% no tráfico, respectivamente. A cidade, há dois anos, lançou o Pacto Lajeado pela Paz, com iniciativas integradas focando em aplicar a lei e prevenir a violência. “Fortalecemos o trabalho da Brigada Militar e Polícia Civil, envolvemos o Ministério Público, Judiciário, secretarias municipais e comunidade”, explica o tenente-coronel Paulo Roberto Gandin, secretário municipal de Segurança Pública. Ele destaca que a cidade analisa mensalmente os principais índices, concentrando ações nos bairros onde há mais ocorrências.
Há três anos, Pelotas, no sul do Estado, tem iniciativa semelhante: o Pacto Pelotas pela Paz. Além da queda de indicadores como os de homicídios — de 34 a cada 100 mil, em 2017, para 9 a cada 100 mil, em 2020 —, ações que abrangem 200 estudantes de regiões violentas contribuem para os bons resultados. O secretário da Segurança Pública de Pelotas, Samuel Ongaratto, afirma que o município tem papel determinante na melhoria dos indicadores de violência. “Estamos mais perto da família. Em algum momento, a mãe, a avó, o pai ou esse jovem recorrem a serviços de saúde, ao CRAS ou à rede escolar. E isso faz a diferença na hora de trabalharmos em conjunto”, completa.
Visão compartilhada pelo professor da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. Para ele, os municípios são o poder mais próximo do cidadão e devem ter um papel “inovador” no combate e na prevenção às drogas. “Devem fazer um diagnóstico, ver os principais problemas e articular forças — da sociedade civil, igrejas, segurança, organizações sociais para o combate e a prevenção ao uso de drogas. Tudo em conjunto com o governo estadual”, propõe.