Proposta de “Nova saúde mental” causa polêmica

Mudança no atendimento. Conselho Federal de Psicologia emitiu nota de repúdio às medidas que estão em estudo

O Ministério da Saúde anunciou que está trabalhando em mudanças no atendimento à saúde mental no Brasil. Apesar de afirmar que as alterações ainda não estão decididas, mas em construção, na semana passada, foi divulgada uma nota técnica que, por ser muito criticada por especialistas, foi retirada. O documento autorizava a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia (os eletrochoques) para o Sistema Único de Saúde (SUS), reforçava a possibilidade da internação de crianças em hospitais psiquiátricos e pregava a abstinência no tratamento de dependentes de drogas.

As medidas provocaram críticas porque os especialistas na área defendem que a internação infantil deve ser a última das ações, já que priva a criança do vínculo familiar, de atividades escolares e de socialização, necessárias e um direito delas. Já a abstinência completa é questionada porque há 30 anos o Brasil investe na política de redução de danos, considerando que, em muitos casos, a abstinência total mostra-se impossível.

O eletrochoque, apesar de ser uma técnica aplicada em casos específicos, é rechaçada por profissionais porque, para ser feita da forma correta e com protocolo de anestesia, demanda investimento e estrutura que os hospitais públicos não têm. Isso, portanto, pode trazer de volta o uso inadequado, feito sem anestesia, com práticas semelhantes à tortura.

Giovane dos Santos é psiquiatra e atua no Hospital Sagrada Família. Foto: Arquivo Jornal Ibiá

Por meio de nota oficial, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) manifestou repúdio à Nota Técnica Nº 11/2019 intitulada “Nova Saúde Mental”, publicada pela Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde. “O teor do documento aponta um grande retrocesso nas conquistas estabelecidas com a Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216 de 2001), marco na luta antimanicomial ao estabelecer a importância do respeito à dignidade humana das pessoas com transtornos mentais no Brasil”, afirma o texto.

A representante do CFP no Conselho Nacional de Saúde (CNS), Marisa Helena Alves, explica que a medida rompe com a política de desisntitucionalização e incentiva a hospitalização e o tratamento desumanizado. Ela ressalta a gravidade da desconstrução da Rede de Atenção Psicossocial (RAPs), com a inclusão dos hospitais psiquiátricos entre os mecanismos. “Consideramos um retrocesso a inclusão dos hospitais psiquiátricos nas RAPs. Com a Reforma Psiquiátrica, o paciente psiquiátrico passava a ter essa atenção fora dos muros do manicômio e consequentemente em liberdade, podendo ter todo o seu direito de cidadão de ir e vir preservado”, explica Marisa.

“Abertura de vagas para infância e adolescência é retrocesso”
Para esclarecer o assunto, conversamos com o psicólogo Giovane dos Santos, que atua no Hospital Sagrada Família. A instituição, localizada em São Sebastião do Caí, conta com área de saúde mental, oferecendo 32 leitos destinados a pacientes particulares ou convênios e 28 pelo SUS, os últimos frequentemente com lotação máxima.

Giovane lembra que, no Sagrada Família, são atendidos apenas pacientes adultos – a partir dos 18 anos. “Consideramos um retrocesso a abertura de vagas para infância e adolescência, visto que o objetivo é promover ações e políticas públicas para o tratamento das crianças e adolescentes nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) infantis, seguindo a lógica antimanicomial”, diz Giovane dos Santos.

USO do eletrochoque nos antigos manicômios virou técnica de tortura

Quanto à eletroconvulsoterapia, ele lembra que a técnica ainda é utilizada, em casos bastante específicos, em pacientes cuja medicação já não supre as necessidades. Mas em condições totalmente diferente dos moldes em que era aplicada antigamente, e bem menos invasiva. “Não utilizamos no nosso hospital”, enfatiza Santos.

Disponível numa instituição de Porto Alegre, seu uso requer a existência de UTI no hospital. “Mas deve ser usada apenas nos casos em que as medicações já não respondam para melhora do quadro do paciente”, reforça o psicólogo. “Consideramos um retrocesso o uso dessa técnica de maneira indiscriminada nas instituições de saúde, que seria também uma volta à lógica manicomial”, lembra o especialista.

A eletroconvulsoterapia
Com o apoio da médica psiquiatra Graziela Stein de Vargas, o Ibiá já explicou em detalhes essa técnica, tão rara atualmente, e que já foi utilizada como modo de tortura no Brasil. Em dezembro de 2017, Graziela explicou que a terapia é realizada somente em clínicas e hospitais, com eletrocardiograma e monitoramento. A sessão dura apenas cinco minutos e o paciente está sob anestesia. “É uma descarga elétrica utilizada para regular os neurotransmissores. Assim como um marca-passo pode ser utilizado por quem tem problemas cardíacos. Similar ao tratamento utilizado por quem sofre de epilepsia. Um procedimento feito com toda a segurança e apenas quando não há alternativa”, disse ela.

A ECT é indicada apenas em três casos: grávidas que não podem realizar tratamento medicamentoso para alguma doença psiquiátrica como a esquizofrenia, pacientes com transtorno ou retardo mental graves em que já foram tentadas todas as demais alternativas sem sucesso, e casos em que o paciente já tentou suicídio várias vezes e não apresentou respostas aos demais tratamentos. Graziela relatou, ainda, que em mais de uma década de profissão, jamais teve um paciente com indicação para este tratamento, o que revela o quanto é raro o seu uso.

Luta antimanicomial
A inconformidade dos especialistas contra a nota técnica do Ministério da Saúde ocorre porque ela vai na contramão da lei 10.216, de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. Voltando a uma história triste e nem tão antiga (até 2001) do Brasil, quando era “aceitável” que pessoas com transtornos mentais fossem internadas em hospitais psiquiátricos que funcionavam como asilos. Lá eram abandonadas até a morte, sofrendo maus-tratos.
Com o movimento da reforma psiquiátrica, iniciado ainda nos anos 70 e fortalecido com a instituição do SUS, em 1988, passou-se ao chamado “modelo substitutivo”, no qual os pacientes recebem atendimento nos Caps, mas mantêm o vínculo familiar e o convício social. As internações ficam restritas a casos críticos e o paciente volta ao lar quando o caso está estabilizado. O Caps é uma unidade de atendimento voltada à saúde mental, com profissionais de diversas especialidades. Eles atendem casos de pacientes com transtornos psiquiátricos e problemas causados por álcool e drogas.

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