Médica nefrologista Tatiana Michelon fala dos dados sobre doação de órgãos no HM

Jornal Ibiá – Quais os resultados que a equipe percebe neste período de trabalho relacionado à doação de órgãos na cidade?
Tatiana Michelon – Estamos no nono mês de atividade plena e podemos dizer que o resultado do trabalho do Projeto Cultura Doadora em Montenegro já evidencia uma verdadeira mudança de cultura na comunidade do Vale do Caí, em relação ao tema “Doação de Órgãos para Transplantes”. É impressionante o impacto que temos, graças ao acolhimento da causa pela nossa comunidade. Sentimos que cada vez mais as portas para as rodas de conversas, palestras, depoimentos, atividades culturais e trabalhos didáticos vão se abrindo mais em todos os setores da sociedade. É por isso que o trabalho que desenvolvemos aqui nos enche de orgulho e tem chamado a atenção de todos os segmentos envolvidos com transplantes no nosso estado. Foram nove meses de um forte trabalho na disseminação das informações corretas sobre todo o processo de doação e transplante, demonstrando a seriedade e a transparência de todas as etapas, desde o diagnóstico de morte encefálica até a alocação dos órgãos pela Central Estadual de Transplantes para os receptores mais compatíveis e/ou mais urgentes na lista de espera por um órgão. Nossa meta é desmistificar conceitos equivocados, levar conhecimento sobre tudo o que se relaciona ao tema e, principalmente, fazer com que todas as pessoas entendam e sintam a importância de uma doação e, finalmente, manifestem sua posição de doador (ou não) à sua família.

JI – Quais os números que podem ser destacados a partir da instalação do Cultura Doadora?
TM – Já contabilizamos centenas e centenas de pessoas que em algum momento escutaram e tiveram a oportunidade de participar desse projeto de fluxo contínuo, multisetorial e multimídia na nossa região. Várias escolas, universidades, casas de saúde, organizações, entidades e comunidades locais já abriram as portas e oportunizaram esclarecer dúvidas e conhecer incríveis histórias, todas verdadeiras, de pessoas que um dia viveram a angústia de estar em uma lista de espera e também de pessoas que, em meio à dor imensurável pela perda abrupta de um familiar, abriram seu coração e, através da sua generosidade, multiplicaram vidas com o seu ato de desprendimento. Temos um único interesse, o de compartilhar conhecimento e chamar a atenção de que este é um tema que está ao redor de todos nós. Aliás, muito mais fácil é nos tornarmos um candidato a receber um transplante do que virmos a ter uma condição de morte que permita a doação dos órgãos.

JI – Quantas pessoas já doaram e quantos órgãos foram captados em Montenegro?
TM – Com um trabalho intrahospitalar, junto ao Hospital Montenegro (HM), que iniciou em janeiro deste ano, tivemos a seguinte casuística: foram oito pessoas que faleceram dentro deste hospital através do mecanismo de morte encefálica, devido, na maioria dos casos, a um acidente vascular cerebral (AVC). Houve casos também de morte encefálica causada por um traumatismo craniano. Parece pouco, mas não é. Isso porque somente 1% das mortes ocorre por meio deste mecanismo que permite manter a viabilidade dos órgãos por algum tempo após o momento da constatação do óbito. O fato positivo deste cenário é que agora, desde que o Hospital Montenegro passou a fazer parte da Rede Brasil do AVC, casos com possibilidade de evoluir à morte através deste mecanismo adentram à casa de saúde, quando antes eram referenciados a outros hospitais da grande Porto Alegre. Então, temos sim a obrigação de identificar todos os potenciais doadores que falecem aqui. A grande notícia é que, ao contrário dos anos anteriores, nestes nove meses de atividade do Cultura Doadora Montenegro e da Comissão IntraHospitalar de Doação de Órgãos para Transplantes do HM (CIHDOTT-HM), cinco das oito famílias consentiram doar os órgãos de seu ente falecido nestas condições. Significa dizer que a região saiu da constrangedora taxa de 100% de negativa familiar para a honrosa taxa de 62,5% de consentimento à doação por parte das famílias. Foram oito potenciais doadores, cinco deles efetivo e 17 órgãos removidos para transplante. Essa taxa de efetivação da doação levaria o Vale do Caí à sétima posição do ranking mundial da doação de órgãos, caso nosso Vale fosse um país. É um mérito absoluto da comunidade regional.

JI – O que ainda precisa ser trabalhado em Montenegro e na região em relação à doação de órgãos?
TM – O projeto prevê a continuidade da disseminação da cultura de educação em doação para transplantes dentro das instituições de saúde, envolvendo cada vez mais os colaboradores de todos os setores, incluindo os não-assistenciais, além de manter a inserção nos diversos setores da sociedade. Queremos avançar para além de Montenegro, abraçando os demais municípios da região que são atendidos pelo HM. Todavia, no próximo ano teremos o foco especial na aplicação de projetos pedagógicos junto às escolas. Temos ferramentas desenvolvidas por renomados pedagogos e já aplicadas em escolas de outras cidades, que podem ser oferecidas aos alunos de todas as idades, inclusive aos do ensino fundamental. Estaremos, com isso, oportunizando o desenvolvimento de cidadãos mais conscientes e estimulando a conversa entre pais e filhos, resgatando a solidariedade em nosso meio.

JI – O Hospital Montenegro está 100% preparado para atender todas as etapas da doação de órgãos, ou há algo que ainda não é feito em nosso hospital?
TM – O Hospital Montenegro ainda necessita do apoio da Organização de Procura de Órgãos (OPO), da Secretaria da Saúde do Estado e, no nosso caso, a OPO1, localizada na Santa Casa de Porto Alegre, para a realização do exame complementar confirmatório do diagnóstico de morte encefálica. Na maioria dos casos, a OPO1 vem ao nosso hospital com um equipamento de ecografia com software específico e um médico neurologista ou neurocirurgião com capacitação específica em ecodoppler transcraniano. Em casos raros, em que não se consegue uma qualidade ótima do exame Doppler transcraniano, existe a possibilidade de transferir o potencial doador até a Santa Casa de Porto Alegre para a realização de outro tipo de exame confirmatório, a cintilografia do sistema nervoso central. Considero que o nosso investimento local ainda deva ser centrado na capacitação dos profissionais que aqui trabalham e que, de alguma maneira, acabam tendo contato com o paciente e seus familiares. Esses colaboradores, necessariamente, representam disseminadores estratégicos permanentes das informações corretas sobre todo o processo doação-transplante e de tudo o que fazemos.

JI – Todos os tipos de órgãos podem ser doados e captados no HM?
TM – O HM está capacitado para a remoção de todos os órgãos que podem ser transplantados no Estado do Rio Grande do Sul, como coração, pulmões, fígado, rins e pâncreas. O estado ainda não realiza transplante de intestino. Com relação aos tecidos (pele, válvulas cardíacas, córneas e ossos), eles não vêm sendo captados no HM. Isso porque, com exceção da córnea, esse tipo de remoção depende de alguns poucos profissionais capacitados e, por questões de estratégias da Secretaria da Saúde, a prática tem sido restrita a alguns poucos hospitais maiores e com mais tradição.

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