Corrupção virou rotina na Prefeitura

Novos áudios da Operação Ibiaçá mostram a ação ilegal de empreiteiros e agentes públicos nas licitações em Montenegro

Com impressionante desfaçatez e organização, um grupo de empresários e agentes públicos agiu por mais de um ano na Prefeitura de Montenegro, fraudando licitações e superfaturando preços. Esta é a conclusão a que chegaram os promotores de Justiça após ouvir as escutas telefônicas de cerca de dez pessoas, concedidas pela Justiça, e que deram origem a uma ação civil pública contra o ex-prefeito Luiz Américo Aldana e seus principais assessores por fraudes na concorrência do transporte escolar. Sabe-se, agora, que a “organização criminosa” tinha ramificações em outras áreas do governo e que os valores pagos a mais ou por serviços mal feitos podem chegar a milhões de Reais.

Na manhã de ontem, o presidente da Câmara de Vereadores, Neri de Mello Pena (PTB) com o aval do desembargador Júlio Cézar Finger, da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, tornou públicos os autos da Operação Ibiaçá. Os documentos, divididos em seis volumes e onze anexos, somam mais de 2 mil páginas. Embora o senso de responsabilidade para com a informação exija uma análise mais detalhada da papelada, já é possível dizer que a corrupção era rotina na Prefeitura durante o governo Aldana.

O material chegou à Câmara durante o processo de Impeachment do prefeito, concluído na semana passada. Porém, embora o “segredo de Justiça”, que impedia a divulgação do conteúdo, tenha sido levantado em 29 de agosto, só ontem ocorreu a divulgação. Segundo o presidente do Legislativo, a decisão foi do grupo de vereadores, para não “tumultuar” o processo de cassação.

A documentação contém a transcrição de dezenas de conversas entre agentes do governo com os empresários Ricardo Schütz e José Valmir Silveira D’Ávila, donos das empreiteiras Kamu e JLV. Num esquema que tinha o engenheiro Ricardo de Albuquerque Mello, da Secretaria Municipal de Obras Públicas, como viga-mestra, ambos ditavam as regras das concorrências, a ponto de elaborarem eles próprios – e não a Prefeitura – os orçamentos que deram base aos processos de licitação de vários serviços. Entre eles, a construção de escolas, de muros e da recuperação do Cais do Porto, onde as enxurradas levaram parte do talude em 2015.

No processo, há depoimentos que incriminam o próprio ex-prefeito Aldana; seu chefe de gabinete, Valter Robalo; o gerente de ações de governo, Gilson Hartmann; os secretários Carlos Alberto da Silveira Junior e Evandro Machado; o ex-diretor de Licitações, João Francisco Teixeira da Silva, entre outros, incluindo engenheiros, arquitetos, advogados e servidores.

O que mais chama a atenção nas transcrições é a naturalidade com que as fraudes eram combinadas e a promiscuidade das relações entre agentes públicos e privados. Muitos assuntos eram resolvidos em reuniões de servidores na sede das empreiteiras e no próprio gabinete do prefeito, dentro e fora do horário de expediente. O tráfico de informações privilegiadas era rotina, garantindo que a maioria das licitações fosse vencida sempre pelos empreiteiros Ricardo Schütz e José Valmir Silveira D’Ávila. Este último, inclusive, era chamado de “xerife” por secretários e, segundo uma funcionária da empresa, chegava a “despechar” no Palácio Rio Branco.

Como funcionava o esquema criminoso?

O “esquema” que permitia às empreiteiras Schütz e JLV vencer a maioria das licitações da Prefeitura tinha, segundo as gravações da Operação Ibiaçá, o engenheiro Ricardo de Albuquerque Mello, da Secretaria Municipal de Obras Públicas, como principal operador. Toda vez que a Administração Municipal se preparava para realizar uma obra ou contratar um serviço, estas empresas eram comunicadas previamente. Ao invés de o poder público elaborar os orçamentos que dariam base ao edital, eram profissionais ligados a estas empresas que o faziam, já com os valores que pretendiam cobrar.

Publicado o edital, o grupo se assegurava da vitória da empreiteira para quem a obra havia sido direcionada. Para isso, quando necessário, criava obstáculos a outros interessados, que eram até mesmo inabilitados. Depois, divulgado o resultado da licitação, o próprio Ricardo era encarregado de fiscalizar a execução de quase 100% dos contratos da Schütz e da JLV. Inclusive, segundo uma testemunha, fazia vistorias a bordo de veículos destas empresas, na carona dos proprietários. Há gravações sugerindo que, nestes procedimentos, o engenheiro fazia vistas grossas a irregularidades como o uso de insumos diferentes dos previstos no edital, inclusive de qualidade inferior.

O grupo também é acusado de forjar a participação de outras empresas para ganhar concorrências menores, feitas mediante dispensa de licitação. Nestes casos, para fazer a contratação, o agente público deve obter três orçamentos com o mesmo objeto. Ganha o menor. Há ligações em que tanto Schütz quanto Valmir pedem “emprestado” o CNPJ e a assinatura a empresários amigos. Na verdade, eram eles que forjavam os orçamentos, com valores sempre maiores que os de suas empresas. Inclusive, há uma conversa em que um servidor reclama que não se pode apresentar sempre os mesmos concorrentes e que devem buscar empresas “de longe”.

Uma testemunha, que teria trabalhado com Ricardo de Albuquerque Mello na Smop e teria sido removida do setor porque “estava atrapalhando”, informou que o colega também forjava laudos para justificar a realização de obras em regime emergencial para beneficiar as duas empreiteiras. Teria ocorrido na recuperação do talude do Cais do Porto, em 2015. Próximo à saída do Arroio São Miguel, as inundações causaram a queda da barreira. Para garantir o conserto imediatamente, o engenheiro teria produzido um laudo sugerindo que o índice histórico de chuvas “levaria o resto” se não ocorresse uma intervenção imediata. A empreiteira Schütz ganhou a disputa com um orçamento da ordem de R$ 900 mil, dos quais 5% (em torno de R$ 45 mil) teriam sido repassados a Ricardo. Não foram apresentadas provas.

A testemunha também declarou que alguns projetos eram prositalmente concebidos com falhas para justificar aditivos contratuais e a execução de serviços que não estavam previstos inicialmente. Assim, as empresas aumentavam suas margens de lucro.

Secretária de Obras e servidores da pasta teriam sido afastados para “não atrapalhar”

A ex-secretária municipal de Obras Públicas, Karina Leser Daudt, está na lista das pessoas que tiveram seus telefones “grampeados” pela Justiça a pedido do Ministério Público. Não existe, nos autos da Operação Ibiaçá, nenhum indício de envolvimento dela em algum tipo de irregularidade. Ao contrário, em conversa com a secretária municipal da Saúde, Ana Maria Rodrigues, em 1º de dezembro de 2015, ela explica que lhe foi pedido que deixasse o cargo. Karina suspeitava que estivesse “atrapalhando” alguma coisa. Ela fez a mesma afirmação durante telefonema de um ex-colega da Prefeitura.

Uma das trestemunhas no processo também disse que apontou problemas numa obra executada pela empreiteira Schütz e, logo depois, foi deslocada para outro setor. Estas ordens, afirma, partiriam do gabinete do prefeito Luiz Américo Aldana. Ela garante que o chefe do Executivo sabia de tudo. E mais: que era o “cacique”.

Chega a ser espantosa a proximidade entre o grupo que cercava o prefeito e os dois empreiteiros. A ponto de o próprio Aldana, em pouco mais de 17 horas, ligar para o dono da construtora Kamu, Ricardo Schütz, três vezes em busca de um encontro com ele. Foi no dia 4 de julho do ano passado, às 16h19 e às 17h20 e, no dia 5, às 9h22. No terceiro contato, o prefeito diz: “…temos que acertar aqueles detalhes lá”.

Karina confirma à secretária da Saúde, Ana Maria Rodrigues, que recebeu pedido para se exonerar

 

 

 

 

 

 

 

Ricardo Schütz e o engenheiro Ricardo de Albuquerque Mello falam sobre as mudanças que ocorreram na Secretaria de Obras com a saída de Karina Leser Daudt. Juntos, tramam o afastamento de um arquiteto. Ao fim, Mello afirma que “agora vai andar”, numa referência aos negócios da empreiteira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escutas não fornecem provas sobre “propina”
As dezenas de escutas divulgadas ontem não fornecem provas de que houve alguma contrapartida material aos benefícios obtidos pelas empreiteiras investigadas na Operação Ibiaçá. Há, porém, os depoimentos de algumas testemunhas dizendo que ouviram isso de terceiros. Contudo, como a Justiça determinou a quebra do sigilo fiscal dos investigados, é possível que, ao longo do processo, surjam situações de enriquecimento ilícito. Nas conversas entre agentes públicos e empresários, há citações a “acordos”, “acertos” e “negócios”, mas não é possível afirmar com certeza que se trata do pagamento de propina.

A divulgação das escutas e dos depoimentos obtidos pelo Ministério Público no âmbito da Operação Ibiaçá resultarão em novas reportagens ao longo da semana.

As evidências de uma relação inaproppriada
Neste diálogo, o empresário Ricardo Schütz conversa com seu funcionário, Ivan Magni, que admite ser o responsável pela produção de uma planilha inserida num processo de licitação da Prefeitura. E elaboração destes documentos compete ao corpo técnico da Secretaria de Obras.

 

 

 

 

 

Em outra conversa, o empresário Ricardo Schütz orienta o engenheiro Ricardo de Albuquerque Mello sobre o que deve ser feito em uma concorrência para eliminar um dos adversários. Ao exigir o uso da estaca Strauss, que a outra empresa parece não ter, favorecem a Kamu.

 

 

 

 

 

Neste diálogo, Ricardo Schütz diz ao engenheiro Ricardo de Albuquerque Mello que outro fiscal da Prefeitura está “complicando” no acompanhamento da obra da Escola do bairro Senai, a cargo da empreiteira. E recebe a promessa de que, na semana seguinte, o próprio Mello, que se diz um fiscal “tranquilo”, passará a fazer este trabalho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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