ELABORAÇÃO DO LAUDO é o ponto mais questionado
146 servidores públicos da Prefeitura de Montenegro tiveram seu adicional de insalubridade cortado ou reduzido neste mês. A revisão pegou parte dos trabalhadores de surpresa na última quinta-feira. Gerou uma onda de insatisfação, especialmente na área da Saúde, onde foi registrado o maior número de alterações. Dentre as categorias mais afetadas, os enfermeiros, 18 perderam o adicional máximo, de 40%, para serem reclassificados como atividade de risco médio, com adicional de 20%. “Isso ter chegado no meio da pandemia foi como um tapa na cara”, desabafa a enfermeira Sabrina Müller, que atua na UBS Timbaúva, junto à Assistência. Ela pretende contestar a reclassificação na Justiça.
Determinação do Tribunal de Contas do Estado (TCE), o laudo que revisou as condições de salubridade em todos os setores da Prefeitura foi feito ainda em 2019, mas só transformado em decreto para aplicação no final do ano passado. Seria executado em janeiro, mas decreto do prefeito Gustavo Zanatta prorrogou a execução dos ajustes para março. Com o anúncio, desde o fim da semana passada, o laudo de mais de 300 páginas vem circulando, em versão digital, dentre os servidores. E há questionamentos quanto a sua elaboração.
“Ninguém recebeu essas pessoas para mostrar o seu trabalho, como é o seu serviço”, diz Sabrina. “Esse laudo, provavelmente, foi feito por um técnico dentro de uma sala fechada com alguém administrativo e ninguém foi ver, realmente, as atribuições.” Com nove anos de Prefeitura, a enfermeira mostra que, no laudo, suas atribuições como risco médio seriam “realizar curativos, administração de medicamentos, vacinação, etc”. Já para enfermeiras do setor de infecções sexualmente transmissíveis, as atribuições listadas dão conta de “acompanhamento, consulta, teste rápido, entrega de medicação e lidar com pacientes com doenças infectocontagiosas”. Essas sim como grau máximo.
“Só que eu, enquanto enfermeira da UBS, atendo HIV todos os dias também. Eu tenho agenda toda segunda-feira de paciente com tuberculose”, aponta. “A demanda da enfermagem é gigantesca. Ela tem exposição diária (a doenças). A gente tem contato com todos os tipos de fluídos e secreções fisiológicas de uma pessoa. Eu lido com sondagem de urina, troco bolsa de colostomia, eu aspiro traqueostomia, eu faço tudo isso e no laudo diz que eu não faço nada. Se passassem um dia com uma enfermeira, eles iriam ver qual é o trabalho.” A reportagem fez contato na manhã dessa segunda-feira com a empresa responsável pelo laudo, mas não teve retorno até o fechamento da edição. “A ideia é os enfermeiros irem atrás dos seus direitos”, pontua Sabrina.
“A gente vai continuar na guerra”
A notícia da revisão levou vários servidores a se manifestarem durante a sessão online da Câmara de Vereadores, que teve nos cortes a sua principal pauta. Dentre os comentários, críticas à desvalorização da saúde em meio ao pior momento da pandemia. “Quem irá fazer os testes (Covid) amanhã? Perdendo a insalubridade, não haverá profissionais para realizar os exames”, chegou a escrever uma enfermeira que teve seu grau reduzido. Os ânimos exaltados deixaram os administradores em alerta e intensificaram os esforços para dar a entender que as alterações tratavam-se de determinação legal, não decisão de governo. Mas profissionais contatados pela reportagem garantem que não consideraram greve.
“Somos todos da área da Saúde e, independentemente de qualquer situação, se perdermos insalubridade ou não, nós temos o compromisso com o juramento que fizemos quando escolhemos a profissão”, declara a enfermeira Andréia Coitinho que, por ter Função Gratificada como chefe do serviço de supervisão de ESF’s, teve a insalubridade integralmente cortada. “Independente disso, a gente vai continuar na guerra, porque estamos numa guerra e isso é um comprometimento nosso enquanto profissionais.” A enfermeira Sabrina Müller completa: “Todas nós ficamos frustradas, mas vamos continuar o trabalho como a gente sempre faz.”
NA CÂMARA – Na atual legislatura, dois vereadores são também servidores públicos na secretaria de Saúde e tiveram cortes em seus adicionais de insalubridade. Sérgio Souza (PSB) é motorista e também passou da categoria máxima para de médio risco. “É risco máximo. A gente trabalha (transportando) com pessoas infectadas, com pacientes de isolamento”, contestou. O parlamentar classificou a revisão como uma “facada na costela”; e também denunciou que, em 2019, era chefe de setor na parte de ambulâncias e não foi contatado para a elaboração do laudo. Já a líder de governo na Câmara, vereadora Ana Paula Machado (PTB), teve sua insalubridade de categoria média cortada. Ela é assistente administrativa na pasta. Em sua fala, reconheceu o erro da atual administração em não ter comunicado antes da revisão aos servidores, mas pontuou o papel da gestão anterior no processo.
O que apontou o TCE
Inconsistências com a concessão do adicional de insalubridade na Prefeitura de Montenegro vêm sendo apontadas, pelo menos, desde o julgamento das contas de gestão de 2016; segundo apurou a reportagem no arquivo online de processos do Tribunal de Contas do Estado (TCE). O órgão aponta pagamentos a maior e, inclusive, cita os gestores do período (Luis Américo Aldana e Kadu Müller) como responsáveis pela solução e, se não, pela devolução de valores aos cofres públicos; cerca de R$ 200 mil. Os detalhes estão documentados nas auditorias e também nas defesas das partes. Dão conta de um imbróglio de, praticamente, duas décadas; e que tem, justamente, na classificação dos profissionais de Saúde a sua principal polêmica.
É que existe uma lei complementar municipal do ano 2000 que trata das insalubridades e generaliza como grau máximo o seguinte: “trabalhos ou operações em contato permanente com pacientes em isolamento por doenças infecto-contagiosas, bem como objetos de seu uso, não previamente esterilizados; pacientes, animais ou material infecto-contagiante em hospitais, serviços de emergência, enfermarias, ambulatórios, postos de vacinação, consultórios médicos, dentários e outros estabelecimentos destinados aos cuidados da saúde humana”.
A redação confusa é diferente da que traz a Norma Regulamentadora 15 que, em todo o País, oficializa os critérios da insalubridade; e separa em dois o que traz a lei municipal. Coloca que é risco máximo o contato com “pacientes em isolamento por doenças infecto-contagiosas”; e em médio todo o resto que traz a lei municipal. A discrepância só foi corrigida em nova lei do Município em 2010 com adequação à Norma.
Mas de 2000 pra cá, três laudos foram feitos por peritos contratados trazendo atualizações no pagamento de insalubridade aos servidores. O primeiro, de 2000, dividia profissionais com contato mais direto com os pacientes infecto-contagiosos, como os motoristas de ambulância, em risco máximo; e os de contato indireto, como nutricionistas e pessoas do administrativo, em risco médio. Já o segundo, de 2007, trouxe critérios diferentes e colocou a maioria dos profissionais da saúde em grau médio.
No entendimento da defesa dos gestores do Município, a diferença deu-se pela interpretação diferente das normas usadas por cada perito responsável. Na hora de fazer o decreto de aplicação, cita o documento, a Prefeitura, em 2007, entendeu que teria que ainda seguir a regra da lei municipal de 2000 ou se arriscaria a contestações judiciais. Então, somente acatou a “nova” avaliação aos cargos que não estavam abrangidos pelo laudo de 2000.
Para além de tudo isso, já após a atualização da lei, foi feito novo laudo em 2015, mas não abrangente como os anteriores. Apenas analisando os cargos que não constavam na análise técnica de 2000 e 2007. Sem revisar todos os enquadramentos, o Município deixou de cumprir a regra do pagamento da insalubridade “de acordo com o laudo mais recente”. Também deixou de considerar as modificações nos ambientes de trabalho no decorrer do tempo, pagando a mais que o devido e gerando, segundo o TCE, prejuízo ao erário.
COBRANÇA – Ao apontar os problemas no julgamento das contas de 2016 e 2017, apesar de já sugerir que os prefeitos devolvessem os valores considerados como pagos a maior, o Tribunal decidiu por afastar o débito, mas dar prazo para que a correção fosse feita. Sendo processos demorados, o trânsito em julgado de ambos veio no decorrer de 2019, quando o então prefeito Kadu Müller já tinha iniciado as tratativas para a realização do novo laudo, cujo levantamento ocorreu em outubro. As irregularidades voltam a aparecer no julgamento das contas de 2018 – a última a qual a reportagem teve acesso – que teve trânsito em julgado em outubro de 2020, com prazo de 60 dias para correção. Kadu publicou o decreto de aplicação do laudo em dezembro.
Na última quinta-feira, na sessão da Câmara de Vereadores, a vereadora Ana Paula Machado (PTB) afirmou que o TCE teria cobrado a devolução do ex-prefeito, num valor de cerca de R$ 200 mil, mas que ele ainda poderia recorrer. A reportagem fez contato com Kadu, mas não teve resposta para confirmar a informação da parlamentar. O TCE também não respondeu ao questionamento.