Processo de revisão do Plano Diretor segue em andamento. Entenda
Pela estimativa do IBGE, a população de Montenegro, em 2020, era de 65.721 habitantes; um crescimento de 10,6% em comparação ao último censo oficial realizado em 2010. Mas como e onde vivem todas essas pessoas?
Talvez seja uma questão que passe despercebida pela maioria dos montenegrinos, na correria de todos os dias. Pensar a organização de uma cidade leva em conta uma série de aspectos. Pra que lado o perímetro urbano vai crescer para contemplar essa crescente população; parte dela sem condições de comprar uma casa? A cidade vai crescer para cima ou para os lados? Onde será colocada ou ampliada a rede de escolas para essas pessoas? E a rede de saúde? Terá água e energia elétrica pra todos? Terá pavimentação? E linhas de transporte público? Elas terão praças e lugares de lazer? Será levado em conta o respeito ao patrimônio cultural, histórico e natural de Montenegro?
Responder essas perguntas passa por um processo amplo de planejamento (e revisões desse planejamento) a longo prazo; algo que nem foi reconhecido pelos gestores do Município. “Esse é um problema que não é de Montenegro, mas das administrações municipais, estaduais e federais, em que os governos são de quatro anos e os gestores querem marcar suas administrações por algumas questões e não dar continuidade ao planejamento de longo prazo”, opina o presidente do conselho municipal do Plano Diretor (Complad), Marcelo Cardona.
O montenegrino aponta que o último grande planejamento da cidade foi feito no Projeto Cura, em meados dos anos 80, onde o poder público traçou o crescimento de Montenegro em direção ao bairro Timbaúva; o que ocorreu. No âmbito do Cura, foi construída a Via 2 e a Avenida Ernesto Popp, por exemplo, e algumas escolas; norteando o desenvolvimento daquela região. Mas como indica o atual secretario municipal de Gestão e Planejamento, Fabrício Cotinho, boa parte desse planejamento não chegou a ser executado. “Se todos os itens dessa avaliação tivessem sido colocados em prática, nós teríamos uma cidade muito mais organizada e com fluxos mais tranquilos do que temos hoje”, analisa. “Um exemplo muito claro é que, eu visito o Projeto Cura hoje, e nele se poderia andar pela cidade inteira com ciclovias. Mas no andamento das administrações, isso não foi levado em conta.”
Plano Diretor
Quando feito o Estatuto das Cidades, em 2001, vários municípios brasileiros passaram a ser obrigadas a ter o seu Plano Diretor; uma política urbana que trata, justamente, da organização e planejamento desse crescimento. Em linhas gerais, esse seria um instrumento de gestão com diretrizes e propostas físico-territoriais pra ampliar o desenvolvimento socioecônimico e a organização espacial. Montenegro contratou uma empresa para fazer estudos e aprovou o seu em 2007. Mas ele passou a valer, efetivamente, só em 2014, com a aprovação das leis complementares que o integram, como o Código de Obras, com os limites de construção, e o Zonemaneto da cidade.
“Algo que estamos vivendo hoje e é um desafio para a administração pública é que, quando a constituição do Plano Diretor entrou em vigor em 2014, foi prevista uma zona de expansão da ocupação para a região da Selma Wallauer e da Reinaldo Hörlle, que são vias estruturais e se localizam no Porto dos Pereira e no Faxinal”, aponta Cardona. “Hoje, nós temos saindo ali um grande número de loteamentos, mas sem um planejamento do complemento que isso precisa ter, que são vias de acesso adequadas, pensando um posto de saúde, uma escola. A função do planejamento seria antecipar isso”, critica.
O apontamento dessas áreas para expansão ocorreu só na Câmara de Vereadores, quando da aprovação das leis do Plano Diretor, já após as propostas terem passado pelo Executivo e pelo Conselho do Plano Diretor. “Com isso, também houve o esvaziamento de moradores da região central da cidade. Nós já temos toda uma infraestrutura no Centro que não está sendo utilizada em sua magnitude”, aponta o presidente do Complad. “Hoje, a ideia dos planos é não ampliar as áreas urbanas (para os lados), mas concentrar as áreas urbanas; porque custa muito para a municipalidade essa expansão. O problema volta ao prefeito quando ele tem que responder por três mil lotes naquela região para onde cresceu – 3 mil famílias – e lhes dar infraestrutura”.
Planejamento do crescimento passa por alterações
Por lei, o Plano Diretor precisa ser revisado a cada dez anos. Nesse processo, o presidente do Complad aponta, está a proposta de autorizar a construção de prédios maiores em algumas ruas do Centro; para além do limite que hoje é de seis andares. Seria um dos caminhos para incentivar mais pessoas a viverem em áreas que já têm infraestrutura. A proposta prevê edifícios de dez a doze andares em determinadas ruas. Complexo, o planejamento precisa levar em conta, por exemplo, também a visibilidade do Morro São João, o “Monte Negro”.
Esse conjunto de propostas de revisão foi encaminhado ao Complad ainda pelo Governo Kadu Müller no final de 2019. Parte já foi analisada e recebeu o parecer do conselho recentemente. Dentre as já divulgadas, além da verticalização do Centro, está a ampliação da faixa residencial no entorno do Morro São João para a construção de casas; e a delimitação de microzonas urbanas em meio à zona rural, em áreas consolidadas como Santos Reis, Costa da Serra e Vendinha.
O secretário de Gestão e Planejamento, Fabrício Coitinho, aponta que as mudanças estão alinhadas com o entendimento do atual governo. “Umas das coisas que se leva em consideração é justamente onde eu tenho mais infraestrutura e onde eu quero incentivar que as pessoas fixem moradia”, explica. “Nós ainda temos muitos lotes vazios na região central da cidade, onde as pessoas acabam não construindo ou não negociando por serem caros demais. E é onde temos mais infraestrutura. É uma das demandas. Outra é entender alguns movimentos, como o de muitas pessoas que estão saindo da cidade procurando alternativas que nós temos pouco, como os condomínios fechados.”
“Tem um corpo técnico estudando isso dentro da Prefeitura e isso nos favorece nesse estudo de demandas para pensar o planejamento da cidade”, complementa Cotinho. “As propostas foram feitas em 2019 e foram revisitadas, assim como o próprio Projeto Cura, que é uma escola para a gente revisitar a repensar”. Pela revisão do Plano Diretor, nove leis já tiveram o aval do Complad; a lei geral, o zoneamento e o conjunto de instrumentos acessórios, como a outorga onerosa do direito de construir e o estudo de impacto de vizinhança. Os instrumentos já deveriam ter sido regulamentados quando da aprovação do plano original; porém nunca foram.
Entidades sinalizam para supostas irregularidades
Cotinho explica que, no processo de revisão do Plano Diretor, as propostas partem do Executivo e são enviadas para análise do Complad. “Dentro do conselho, tem membros da Administração, entidades de classe e também comunitárias, então é uma forma de representatividade onde os representantes das comunidades devem conversar com os seus para trazer ideias para a discussão no conselho”, diz o secretário. “Nós temos, por exemplo, representantes do Crea que vão levar para o grupo de engenheiros; representantes dos arquitetos vão levar pro grupo de arquitetos; representantes do patrimônio histórico vão levar pro seu grupo; os membros das associações levam para os bairros. Então, se discute e, a partir daí, se revisa o texto.”
Com as considerações do Complad, Câmara de Vereadores e Prefeitura fazem, em conjunto ou separadamente, audiência pública de apresentação das propostas para também ouvir as comunidades sobre as alterações. A última instância de análise e aprovação é o Legislativo. “Passa para a votação pelos representantes eleitos pelo voto, que são os vereadores”, adiciona Coitinho.
O processo de revisão, porém, vem sendo criticado por membros de entidades que compõem o próprio Complad. “O Plano Diretor deveria ser um pacto social da cidade, onde todos os elementos conversariam para montar; e isso não está acontecendo”, aponta o arquiteto urbanista Fábio Cassal, membro da União Montenegrina de Associações Comunitárias (Umac). “Embora o Município alegue que através do conselho tem a participação social, isso é conversa furada. É só no papel onde diz que todas as entidades participam.”
Cassal aponta que, desde a fase de diagnósticos, já teriam que ter ocorrido reuniões descentralizadas e audiências públicas com a comunidade. E destaca que, desde 2019, a Umac, que centraliza as associações de bairro, perdeu três, das cinco cadeiras que tinha no Complad para a indicação direta de presidentes de associações apontados pelo Executivo. Ele era um dos representantes que, com conhecimento técnico sobre o Estatuto das Cidades, acabou retirado. A entidade, hoje, tenta reapontar nomes técnicos para as suas cadeiras, mas vem sendo barrada com o argumento de que um mesmo conselheiro não pode ocupar o lugar por mais de dois mandatos consecutivos num intervalo menor que dois anos.
Estudos Técnicos
Outro ponto que vem sendo questionado é que as propostas de revisão, apontadas pelo Executivo, não são baseadas em estudos técnicos. “Toda alteração teria que ser baseada em estudos que justifiquem a demanda. Não pode ser apenas porque alguém quer”, coloca o biólogo Rafael Altenhofen, um dos apontados pela Umac para representá-la no Complad. “O Município teria que contratar estudos técnicos para mostrar os déficits e referendar aqueles que já têm. Essa revisão que eles apresentam não resolve os problemas urbanos que já existem.” Altenhofen traz como exemplo a proposta de ampliar o perímetro residencial em volta do Morro. “Tem estudos contratados com recursos públicos que mostram áreas de risco de escorregamento no Morro São João. Tem pedras que podem rolar. Agora, esse novo plano prevê subir o perímetro para 80 metros sem nenhum estudo técnico”, critica.
Em entrevista à Rádio Ibiá Web, o presidente do Complad, Marcelo Cardona, disse entender que há espaço para repactuar o Plano Diretor com uma discussão mais ampla com a sociedade; mas pontuou que o processo que ocorre, atualmente, trata-se da revisão do que já está posto. “Os processos, agora, são de revisão. Então, há um planejamento, se revisita e se vai contornando esses rumos ao longo do tempo. As revisões são para essas correções de rumo”, comentou.
Desde 2019, antes que as propostas do Executivo fossem para o Complad, um inquérito civil está aberto no Ministério Público para apurar uma possível omissão na revisão e na regulamentação dos instrumentos previstos no Plano Diretor. Na época, os instrumentos e as alterações não tinham sido pautados. Desde então, o MP acompanha as tratativas e, adicionados ao inquérito, estão documentos apontando as supostas irregularidades. As queixas também já foram enviadas ao prefeito Gustavo Zanatta e ao próprio Complad. “Quando tu lida com Plano Diretor, tu trabalha com terra, e isso é grana. Mexe no bolso. Então, existe a pressão e as coisas estão passando à vontade”, critica Fábio Cassal. “Essa é a nossa grande briga”.
Um foco especial à questão social
Parte importante do planejamento das cidades é olhar, também, para a questão social e a garantia de moradia digna à famílias mais vulneráveis. É num contexto de crescimento urbano desordenado e de falta de atuação do poder público, afinal, que criam-se núcleos habitacionais irregulares e sem infraestrutura. Exemplo claro disso são os “becos” de Montenegro, onde vivem várias famílias em ruas onde, de tão apertadas, não chega bombeiro ou ambulância. Também, núcleos formados em periferias distantes de uma estrutura básica de atendimento.
Segundo o assessor especial da secretaria municipal de Habitação, Desenvolvimento Social e Cidadania, Vitor Cardoso, o déficit habitacional do Município é altíssimo. “Nós temos mais de três mil famílias aguardando por moradias em Montenegro”, revela. Cardoso destaca que a Administração Municipal vem tentando encaminhar um projeto habitacional junto ao governo federal que, com subsídios – nos moldes do residencial Cinco de Maio – ,seja voltado a quem não tenha condições de pagar muito pela moradia.
“E também estamos com um projeto grande de regularização fundiária”, lembra o assessor especial. O Município fez parceria com uma empresa que está encaminhando as regularizações de núcleos habitacionais já consolidados na cidade; apesar de alguns problemas estruturais. “Queremos resolver esse imbróglio de anos que são as pessoas na clandestinidade que não têm direitos inerentes à segurança jurídica e o direito da propriedade. A legislação do Reurb veio para contemplar esses casos que já estão consolidados e onde não há o que fazer. Tem lugares em Montenegro onde só passa moto, mas as pessoas ali também têm direito ao exercício da propriedade”, pontua Cardoso.
No âmbito do Plano Diretor, um grupo de entidades realizou estudos e apontou, em 2017, as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis). Justamente num contexto onde famílias de baixa renda não têm condições de adquirir lotes em áreas com melhor infraestrutura – que são caras – elas demarcavam espaços na cidade que precisam de atendimento; e também espaços livres que, pelo Município, seriam destinados a essas pessoas. As Zeis, porém, nunca foram efetivamente destacadas por lei; o que também foi apontado ao Ministério Público no inquérito.
Segundo o presidente do Complad, Marcelo Cardona, o entendimento do Executivo sobre a ferramenta é outro. “As Zeis são fundamentais para os programas de regularização fundiária e de habitação popular, porém, a visão da Administração é de que não podemos marcar as Zeis em toda a cidade, porque pode ser que não aconteça a urbanização naquela Zona Especial de Interesse Social”, aponta. “A ideia é de que isso só seja consolidado a partir das demandas e da possibilidade de o Município efetivamente adquirir essas áreas. Porque, quando tu demarca a área como de interesse social, ela fica congelada, e não se pode ter o risco de congelar vinte áreas na cidade e criar uma especulação imobiliária em torno delas”, complementa.