Cilço Campos cavalgou ao lado de Paixão Côrtes para resgatar a cultura do Sul
Se Paixão Côrtes foi o grande líder da retomada do culto as tradições gaúchas, o alicerça de sua iniciativa tem o valoroso apoio de sete amigos, igualmente indignados com o “american way of life” do pós-guerra. E entre os lendários do Grupo dos 8 havia um homem que depois veio construir sua história nas terras do Montenegro. O cirurgião dentista Cilço de Araújo Campos nasceu em Alegrete, mas por mais de 30 anos morou no solo banhado pelo Rio Caí.
O filho Carlos Inácio Talavera Campos, de 67 anos, hoje vive no Uruguai e lembra-se de quando o pai incorporou as fileiras da Brigada Militar como tenente, de onde Cilço saiu coronel. Eram tempos onde os profissionais médicos também sentavam praça e eram integrados à tropa. Ele dividia o trabalho no antigo Batalhão da rua Osvaldo Aranha com os clientes em seu consultório no Centro.
Modesto, nunca falou sobre o heroísmo de sua juventude, ao lado daquele amigo que passou a ser referência de folclore gaúcho. Os próprios filhos souberam de tal feito apenas quando o pai foi homenageado na Semana Farroupilha de 1989 em Uruguaiana. Também foi lembrado In memoriam em sua terra natal, o Alegrete; onde foi evocado como vulto histórico, como herói. “O Prefeito disse que, junto com Mario Quintana, Cilço de Araújo Campos era o cidadão mais ilustre”, recorda o filho orgulhoso.
Daquele momento em diante, começam as ser contadas as histórias da lendária cavalada do Grupo – depois chamado definitivamente de Piquete da Tradição –, da Ronda Crioula e a fundação do CTG 35. “O Grande aglutinador, o embrião, a semente… era Paixão Côrtes”, confirma Carlos. Assim como seu pai, o demais estudantes que formaram o Grupo dos 8 eram filhos de estancieiros da fronteira oeste, hábeis no domínio de seus cavalos ornados com arreios de prata.
Mas isso não bastava, pois toda pessoa com traje típico e montado em um cavalo sofria descriminação naqueles dias. Esse cenário é resultado do tratado de paz que colocou fim à Guerra dos Farrapos, a partir do qual usar bombacha, lenço no pescoço e bota era sinônimo de subversão. Eram considerados antipatriotas, rotulação injusta que enervava os jovens gaúchos. E na época do cavalgada dos 8 pela Capital, ser gaudério ou ser prenda representava pobreza e marginalidade.
A verdade, assinalada por Carlos campos, é que amar a tradição era visto pelo centro do País, e por alguns sulistas, como opção ao “separatismo”. Fato curioso lembrado pelo filho de Cilço foi que este obrigatório sepultamento das raízes gaúchas veio atrelado a concessão de títulos de nobreza aos ricos fazendeiros que encabeçaram a Revolução. “E é claro, que essa guerra foi feita por elites, povo não faz guerra. Não fazia, e não faz até hoje”, observou.
Cavalgada dos 8 revelou o preconceito
“No meu tempo de guri, nos anos 60 em Montenegro, só aparecia de bota e bombacha gente pobre. Gente que vinha das vilas. Esse resgate se deu, posteriormente, com o trabalho do Paixão Côrtes”, ilustrou o filho de Cilço. Carlos não sabe avaliar se aqueles jovens colegas tinham noção da grandeza que seu ato alcançaria. A única certeza que pode cravar hoje é que o Piquete da Tradição tinha um líder chamado Paixão Côrtes.
Este homem fazia justiça ao nome, nutrindo amor pela forma de se comportar do gaúcho, percebida inclusive antes da Revolução. Carlos observa que a determinação em resgatar o folclore esquecido foi motivada diante do negativo rótulo “postura política separatista” que o “gauderismo” recebeu. Era preciso justiçar uma forma de ser que foi banida, enquanto os idealizadores da República passaram a se comportar com trejeitos da Corte do Rio de Janeiro.
“Um dos meus antepassados que lutou naquela guerra recebeu o título de visconde”, ilustra Carlos. Paixão Côrtes não aceitava que a particularidade de sua gente fosse considerada feia, motivo de deboche; então começou a trabalhar para, por exemplo, a pilcha ser considerada traje de gala. Entre as lembranças daquele 5 de setembro que o cavalariano Cilço Campos contava em casa, está o emblemático “caso das bolinhas de gude”. Para ridicularizar aqueles homens do campo, os “playboys” da cidade foram para a Rua da Praia e jogaram bolinhas no chão com intuito de derrubar os cavalos.
O resultado acabou gerando uma memória celebre, pois o cavalo de Cilço Campos rodou, mas ele, com perícia, boleou a perna e ficou em pé, empunhando o pavilhão do Rio Grande do Sul que conduzia. “Neste momento ele foi muito aplaudido. Pois um gaúcho sair em pé de uma rodada do cavalo era sinal de habilidade”, refere o filho. A cena foi eternizada em um quadro que até hoje é ilustração oficial da marcha do Grupo dos 8.
Chamaram a polícia quando viram os cavalarianos
Paixão não se conformava com o preconceito e a ignorância do povo contra sua tradição. Então viu no translado dos restos do general Farroupilha David Canabarro – de Santana do Livramento para o Panteão Farroupilha no Cemitério da Santa Casa – a oportunidade para montar um típico piquete farrapo. A homenagem tinha talude no carro de boi e uma parada folclórica no trajeto para tomar “pinga” em um boteco. E desta parada surgiu outro episódio emblemático. Ao verem um grupo trajado e a cavalo, populares chamara a polícia, acreditando tratar-se de um bando que invadia o estabelecimento.
Carlos lamenta nunca ter encontrado pessoalmente o grande amigo de seu pai, sendo que tudo que sabe da personalidade de Paixão é o que todos os gaúchos conhecem. Mas ressalta que graças a Paixão Côrtes, e a partir do Grupo dos 8 onde seu pai foi fundamental, o tradicionalismo se espalhou pelo Rio Grande do Sul como “fogo de palha”.
Carlos faz essa constatação embora a história daquele dia de fato não era contada, inclusive em sua casa, e os outros sete cavalarianos quase ficaram esquecidos. Inclusive, o filho acredita que o silêncio revela que Cilço sequer se considerava fundador do Movimento.
A viúva de coronel Cilço, professora Maria José, tem 89 anos e mora em Pelotas. Em Montenegro ainda está o caçula dos seis filhos, José Augusto Campos.