Fome. Flagelo é amenizado por programas sociais e pela solidariedade dos “irmãos”
Uma série de variáveis jogou a Nação Brasileira de volta ao Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas). Esta condição foi alcançada em 2018; mas agravada nos último quatro anos, através da soma entre uma crise mundial que se arrasta; efeitos da pandemia; falta de ações governamentais eficazes e a eclosão da guerra contra a Ucrânia, que impacta a economia mundial. Hoje, 33 milhões de brasileiros passam fome e mais de 60 milhões enfrentam algum tipo de insegurança alimentar – como apontado pelo último relatório da ONU –, o que quer dizer que 58,7% da população vive todos os dias a incerteza se terá o que comer.
Em Montenegro, esta realidade é confirmada pelas entidades assistências e oficiais. O Cadastro Único (CadÚnico), órgão que administra programas sociais dos governos, confirma uma curva ascendente. Em agosto de 2019, eram 1.481 inscrições de famílias em “situação de extrema pobreza”. Em agosto deste ano, o registro é de 2.983 famílias nesta classificação. Um salto de 1.502 núcleos familiares, dos quais muitos têm apenas a mãe à frente.
“Com a pandemia, essas mães começaram a procurar a Cufa dizendo que estavam com dificuldade na questão de alimentos”, descreve o sociólogo Rogério Santos, coordenador da Central Única das Favelas (Cufa) em Montenegro. Ele se refere às inscritas no projeto Maria Maria, que depois passou a ser chamado de Mães da Favela, e que em 2019 atendia de 60 a 65 mulheres. A partir de março de 2020 este cadastro foi crescendo gradualmente, chegando ao total de 300 mães atendidas com cestas básicas, número que se mantém hoje (285 a 300).
Santos salienta que este pedido de socorro chegou à Cufa de todo o Brasil. Aqui, com apoio de empresas como a Brasken, a Central chegou a distribuir 1.500 cestas básicas a pessoas em vulnerabilidade em Montenegro, durante três meses. “Nossa média mensal, até janeiro de 2022, era, em torno de, 500 a 550 famílias. Aumentou muito!”. Recebendo menos doações em grande quantidade, hoje a Cufa auxilia 275 mães/ famílias.
O cenário em Montenegro levou a Secretaria Municipal de Habitação, Desenvolvimento Social e Cidadania (SMHAD) a realizar o segundo Seminário de Assistência Social (dia 25 de agosto), abordando desafios da pós-pandemia. O secretário Luis Fernando Ferreira salientou a evolução dos serviços prestados, somando 16 projetos sociais implementados no governo iniciado em 2021.
Doações da Cufa na pandemia
1.053 toneladas de alimentos
7.020 cestas básicas
2.400 cargas de gás
810 cartões de alimentação de R$100,00
350 cartões de alimentação de R$200,00
11.500 absorventes íntimos
13.600 kits de higiene
2.245 fraldas infantis
470 kits de materiais escolares
Cáritas do Centro tem matado a fome de muita gente
Em número de pessoas, o CadÚnico contabiliza um salto é de 9.083 registradas, das quais 6.819 em extrema pobreza em Montenegro. No Município, 9.250 benefícios do Auxílio Brasil são pagos todo o mês. No Brasil, o programa teve inclusão recorde de famílias no último mês, alcançando 20,2 milhões de pessoas em todo País. Observando o gráfico (na página ao lado) é possível ver a pobreza caindo, concomitante ao índice de extrema pobreza subindo. “Esse é o principal reflexo da pandemia de Covid-19.
As famílias ficaram mais pobres!”, aponta o coordenador do CadÚnico, Fabrício Costa Massena.
Uma situação tem se refletido nos três núcleos da Cáritas, ação social da Igreja Católica realizada por voluntários e com destaque mundial em fraternidade. Em novembro, a Cáritas Paróquia São João Batista completa 40 anos de atuação, estando agora em meio ao que especialistas definem como uma das maiores crises de fome no Brasil.
Todas as terças e quintas-feiras sua sede, ao lado da Catedral São João Batista, recebe pessoas em busca de comida. A coordenadora Beloni Nunes Juliano revela que o cadastro já ultrapassou as 200 pessoas, entre moradores e artistas de rua e residentes em extrema pobreza. Cada um pode pegar uma cesta de 10 quilos por mês, definido em controle rígido e justo.
“O objetivo principal da Cáritas é a promoção humana”, definiu a secretária Jani Maria de Oliveira Hauser. Ela se refere especialmente aos grupos de mães – dois grupos com 10 cada, além de seus filhos – que realizam oficinas duas vezes por mês e têm direito ao rancho mensal. Outro preocupante grupo vulnerável socorrido pela Caritas são os idosos, que após a pandemia, já chega a 30 pessoas.
Mães recebem ajuda, mas rezam é por emprego
Valda Adriana da Luz, 40 anos, e sua cunhada, Jaine Andréia Haag Oliveira, 24, estão entre as mães apoiadas pela Cáritas. Valda é casada, tem três filhos (7, 15 e 22 anos), mora no Industrial, em casa nos fundos do terreno do tio. Entre vai e volta, há seis anos participa de um dos grupos (após dois anos precisam ceder lugar para outra mulher). Mas no ano passado, Valda precisou voltar. “Foi a falta de emprego e a necessidade de não deixar faltar comida para as crianças”, declarou.
Então, neste ano, a dona de casa passou a integrar o Mães da Favela da Cufa, onde ganha um rancho, mas seguiu na Cáritas. Isso porque teve a grandeza de se tornar voluntária, sem benefícios. “Fui ajudada e agora posso ajudar quem precisa”, declarou. O marido é pedreiro, e com a queda dos investimentos em obras e reformas, vive há meses apenas de “biscates”.
Jaine vive em casa a mesma situação, com o esposo desempregado. Ela também mora no Industrial, porém em casa própria, ao lado das filhas de seis anos e de cinco meses. Ela também é uma remanescente, que em agosto precisou novamente recorrer à Cáritas. Jaine era auxiliar de produção em uma multinacional brasileira, mas está entre os brasileiros demitidos no início da pandemia.
“Tu vai no mercado e compra uma coisa por cinco, amanhã já tá em 10 Reais”, descreve, referindo-se à inflação dos alimentos. E ambas são taxativas ao dizer que a esperança é “emprego”. “Hoje tem que escolher. Ou leva o arroz, ou o feijão, ou outra coisa”, completa Valda.
Erros de estratégia e ganância, em um país que não é inclusivo para o povo
O economista Silvio Cezar Arend, professor da Unisc, observa que é elevadíssimo o número de brasileiros que não faz três refeições ao dia. “Depende do que é considerado, pode chegar a 100 milhões, em um conceito mais amplo de pobreza”, revela. Este número representa quase a metade da população. E Arend classifica o Brasil como país rico – entre as maiores economias do mundo -, todavia com uma população extremamente pobre. “É uma economia que deu certo para uma parcela ínfima da população”, declara.
O professor culpa o modelo de desenvolvimento, que não é inclusivo. Na verdade, baseado em curtos períodos de inclusão das classes C, D e E, que formam a maior parte do povo. Da mesma forma, não constitui um “mercado consumidor em massa”, ao não gerar empregos em quantidade e qualidade suficiente. “Temos uma população pobre, com baixíssima renda e baixíssima capacidade de consumo”.
O professor também assinala a influência de crises internacionais, com instabilidade no mercado e consequente dificuldades de abastecimento. “Para o Brasil, o maior problema parece ter sido o fornecimento de insumos para a produção agrícola”, avalia. Essa situação é gerada pela dependência da importação de fertilizantes ou componentes produtivos, uma vez que a Petrobrás abdicou da produção e vendeu suas empresas. Essas são decisões de mercado, aponta o professor, com os olhos voltados somente aos preços e ao curto prazo, e não de soberania nacional e de longo prazo.
A mesma tese, de origem e destino da produção visando apenas lucro, é aplicada na auto-suficiência alimentar. Arend explica que há tempos o Governo optou por não recompor os estoques regulatórios de grãos, então ficamos à mercê do mercado munidal, que agora elevou os preços internacionais. Entre estes está o dos fretes, devido aos valores do petróleo e seus derivados, primeiro como reflexo da pandemia e agora pelo conflito na Ucrânia. “Ou seja, falta uma política pública de abastecimento interno, ao invés da visão míope de curto prazo do mercado”, finaliza.
Pobreza do RS
O Rio Grande do Sul é o segundo estado da Região Sul com maior número de famílias atendidas pelo Auxílio Brasil em agosto. Ao todo, mais de R$ 339 milhões serão repassados para o pagamento dos benefícios a 561.237 famílias gaúchas.
Déficit Habitacional em Montenegro
O acesso à moradia também é um importante fator de dignidade, podendo ser usado para avaliar a pobreza de uma comunidade. Segundo dados da Secretaria, considerando os usuários que possuem cadastro atualizado/ativo, há 423 solicitantes de moradia popular no município. Mas, de acordo com o Plano Local de Habitação de Interesse Social, Montenegro possui um déficit habitacional de 1.234 moradias.