A vida por meio de uma máquina

“A vida que tu tinha era uma. Agora é outra. Nunca mais vai ser igual”. A frase recordada por Maria Célia da Silva Ferreira, hoje com 35 anos, lhe foi dita no ano 2000, quando, aos 19 anos, ficou sabendo que seus rins haviam atrofiado e que sua vida dependeria de ficar algumas horas por semana ligada a uma máquina de hemodiálise. Passados 17 anos, dois transplantes e mais de uma década em hemodiálise, ela recorda as mudanças que a doença causou em sua vida, mas que jamais foram fortes o bastante para estagná-la.

Casada há pouco tempo e detentora de boa saúde por toda a vida, Célia procurou auxílio médico se sentindo inchada e desconfiando se tratar de uma gravidez. Na realidade, o inchaço se dava pela retenção no corpo das impurezas que o rim, se saudável, filtraria. Era um problema crônico e a solução iminente estava em passar quatro horas, três vezes por semana, ligada à máquina de hemodiálise. Isso há quase duas décadas, quando as máquinas eram bem menos modernas e capazes que as atuais e provocavam bem mais indisposições.

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Maria Célia da Silva Ferreira fez hemodiálise por mais de uma década

“Eu não sabia para que lado correr. Dentro da sala, só tinha pessoas velhas. Os mais jovens logo saíram para transplante. E aquelas máquinas, das antigas, tiravam muito líquido do corpo. A gente se sentia mal”, recorda. Ela encarou e seguiu à risca as indicações médicas de cuidados e dieta.

Afastou-se do trabalho numa fábrica de calçados e passou a controlar a dieta. Com seus 1,46 m, chegou a pesar apenas 34 quilos e acabou por desistir da dieta rigorosa. “Disse pro médico ‘vamos parar com essa dieta ou eu vou sumir’, depois aprendi que tem de deixar o corpo acostumar aos poucos”, comenta.

Em 2002, Maria Célia conseguiu ser transplantada. O rim que recebeu cumpriu sua função. Porém, gerou reações no organismo, muito em função dos remédios necessários para evitar a rejeição. Ela passou a ter diabetes e sofreu alterações de colesterol e pressão alta. O resultado foi o atrofiamento do órgão recebido e, mesmo com ele ainda funcionando parcialmente, a indicação era retornar à hemodiálise.

Esse recomeço, além de triste para quem havia passado por todo um processo de transplante na busca pela cura, teve ainda complicadores clínicos.

Sofreu três paradas cardíacas devido ao acúmulo de líquido no pulmão e no coração. Reanimada, passou três dias em coma induzido, 15 dias completamente “fora do ar” e outros tantos sem reconhecer as pessoas. Depois, quando já recuperada, foram dois meses “reaprendendo” a andar.

A vida foi retomada, com as horas diárias na clínica de hemodiálise e longe da fila de transplante. Somente em 2013 ela foi transplantada novamente.

O rim veio do norte do Brasil para lhe dar nova vida. Houve dificuldades naturais de quem recebe um órgão doado ao seu corpo. Ele veio, por exemplo, com hepatite C e nela foi tratado. Desde então, ela não mais precisa da máquina que a manteve viva por anos e pela qual nutre uma certa gratidão. A possibilidade de precisar dela novamente existe, mas não há medo. Tanto que Maria Célia retorna ao hospital para visitas à equipe de profissionais e aos atuais doentes. Um dia, ela sabe, pode voltar a ter de pisar ali como paciente. “O transplante é um remédio. E não há remédio que funcione para sempre. Eu tenho consciência de que esse rim pode falhar também”, comenta, pronta para o que a vida lhe trouxer.

Aceitação é, segundo ela, a chave para superar isso. Não adianta olhar para a máquina como a fonte do sofrimento, quando ela é, na realidade, a chance de continuar vivendo. “Logo que comecei, o doutor me disse para aceitar que a clínica era a minha segunda casa, e aqueles os meus novos parentes. Eu nunca parei minha vida pela doença. Eu a mudei”, revela. Agora é a hora de mudar novamente, recomeçar. Ela está prestes a deixar a licença saúde e também concluir o Ensino Médio, cursado na modalidade EJA da escola AJ Renner. Marcas ficam. Algumas bem aparentes como as cicatrizes deixadas pelas fístulas colocadas nos dois braços e os quatro catéteres usados no pescoço. Há outras, bem mais discretas e profundas, que ensinaram a aproveitar a vida, mesmo que ela seja diferente daquela que esperava viver.

Dia Mundial do Rim lembra os cuidados
A “segunda casa” de Maria Célia da Silva Ferreira fica no quinto andar do Hospital Montenegro. O espaço é locado pela Nefroclin, a única clínica de nefrologia do Vale do Caí, que atende a pacientes de 14 municípios e existe em Montenegro há 21 anos. A nefrologia é a área da medicina que cuida do estudo da fisiologia e das doenças dos rins. Ou seja, a clínica não se dedica apenas à hemodiálise, mas a todo cuidado e possível manejo do paciente para adiar a necessidade de hemodiálise e melhorar a sua situação clínica. Cuidados com um órgão essencial ao corpo humano e que todos – não apenas quem está doente – podem ter.

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Nilo Hoefelmann, nefrologista; e Anna Esther Hoefelmann, administradora da Nefroclin

Lembrar esses cuidados é o motivo pelo qual toda segunda quinta-feira de março é realizado o Dia Mundial do Rim, campanha abraçada pela Sociedade Brasileira de Epidemiologia e Prevenção de Doença Renal e que destaca ações de prevenção. Em 2017, o tema da campanha é a “Doença Renal e a Obesidade”. O nefrologista Nilo Hoefelmann explica que a maior causa de ingresso em hemodiálise hoje é a diabetes, seguida pela hipertensão. Só depois aparecem as doenças oriundas dos rins. E tanto diabetes quanto hipertensão têm suas raízes na obesidade. “Mais de 60% dos pacientes entram em diálise por diabetes ou hipertensão. E isso está relacionado com hábitos de vida desde a infância. Que podem ser melhorados para se evitar adoecer”, enfatiza o médico.

A receita é aquela já bem conhecida. Uma alimentação balanceada e exercícios físicos não têm o poder de impedir a doença, mas minimizam – e muito – as chances ao longo da vida. E isso ocorre, também, porque a longevidade vem crescendo no mundo. Significa que coração, pulmão e todos os demais órgãos, incluindo os rins, terão que funcionar por mais tempo. “Um jovem obeso tem mais chance de, aos 40 anos, estar diabético e, aos 60, dependendo de uma máquina de hemodiálise para viver”, exemplifica o especialista.

Nessa quinta-feira, dia 9, todos esses cuidados serão lembrados em evento promovido pela Nefroclin e a Secretaria Municipal da Saúde, na Praça Rui Barbosa. Das 9h às 16h, será feita divulgação da campanha pelo Dia Mundial do Rim, medição da pressão arterial e da circunferência abdominal. Além das orientações quanto aos alimentos e ao que, por vezes, está escondido neles, conforme explica Anna Esther Hoefelmann, administradora da Nefroclin e assistente social. “Quando a gente bebe uma lata de refrigerante, por exemplo, quanto há de açúcar nela? Essa medição do açúcar e do sódio embutido nos alimentos será mostrada no evento”, diz a profissional.

Equipamentos evoluíram no decorrer dos anos e, para que a hemodiálise seja feita é necessário, também, o tratamento da água utilizada

“Não pode ser uma relação de ódio com a máquina”
Um paciente com problema renal tem uma série de cuidados e tratamentos retardando a entrada em hemodiálise. Isso só ocorre quando 90% da capacidade renal já foi perdida. A orientação é que o paciente passe 12 horas semanais ligado à máquina – divididas em três sessões – e assim consiga ter uma rotina mais próxima do normal. Nessas quatro horas, todo o sangue do paciente passa por dentro da máquina diversas vezes e o excesso de líquido no corpo é retirado.

Ao chegar na clínica e ao sair, é feita pesagem. O ideal é que a pessoa tenha perdido até 5% do seu peso. Quando a máquina tem de tirar muito além disso, há um desgaste muito grande no corpo, o que causa indisposições como câimbras, náuseas ou pressão baixa. “E tem de tirar do corpo todo esse excesso de líquido ou poderá haver acúmulo no pulmão. Nesse caso, ocorre como que em um afogamento, com o líquido que está no próprio corpo”, explica Nilo Hoefelmann. Por isso, quem está em hemodiálise têm uma dieta bastante rígida, que restringe a ingestão de líquidos e de alimentos que contribuam para a retenção deles no corpo.

A hemodiálise é um tratamento desgastante. Alguns pacientes se sentem muito cansados. Isso depende muito da adesão deles aos cuidados com a saúde, das atividades rotineiras que têm e da aceitação ao tratamento. “O paciente precisa saber que aquela máquina é a salvação dele. Para outros órgãos do corpo, não há uma máquina. Não pode ser uma relação de ódio, tem de ser de amor. É ela que salva a sua vida”, diz Anna Esther Hoefelmann.

A fase da cura
Sabe qual o grande problema da doença renal? O silêncio! Há cerca de 15 anos eu não tinha nenhum sintoma aparente de doença. Aparente, claro. Pois minha pressão arterial voava alta e eu não sabia. Mas resolvi que precisava perder peso e, antes de começar academia, fui a um médico cardiologista, onde realizei teste de resistência na esteira e eletrocardiograma. Tudo certo com o coração, mas aquele profissional já me alertou que minha pressão estava anormal.

E se não era coração, avisou, certamente eram os rins. Encaminhado a uma médica Nefrologista, recebi o diagnóstico de 50% de função renal restante. Imediatamente iniciei tratamento e acompanhamento médico que visava retardar a parada total dos dois órgãos. Restrição na alimentação, exercício físico, remédios e muita água. Minha expectativa era que a doença se manifestasse lá pelos 70 anos. E não agora, aos 44.

Todavia, no segundo semestre de 2016, os exames já revelavam uma queda de função renal (conforme a Creatinina) abaixo de 20%. E entre dezembro e janeiro, durante minhas férias, os meus rins desistiram da luta. Tosse forte, persistente e seca, seguida de perda da voz, poderiam ser apenas sintomas de resfriado ou sinusite. Mas, na verdade, era meu organismo reagindo aos 6% de função renal que me restavam, confirmado em exames de emergência no Hospital Montenegro (HM).

No mesmo dia, fui submetido ao tratamento de Hemodiálise. Como foi emergencial, meu acesso precisou ser feito com dois catéteres no pescoço, ligados ao coração via artéria. Um desconforto passageiro até o procedimento de limpeza do sangue começar a ser feito pelo braço. Mas a verdade é que as quatros horas diárias – em três sessões por semana – são um alívio. O risco de morte reduziu muito e já começo a sentir os primeiros efeitos de melhora.

Somente um transplante me deixará 100% novamente. Enquanto isso, dou graças a Deus que a Hemodiálise foi inventada e que existe a equipe da Nefroclin em Montenegro. É dolorido ficar quatro horas ligado a uma máquina? Não. A única aflição é na hora de ligar as agulhas. É chato ficar ali? Ah, isso é. Bem monótono. Mas é preciso ter bem claro que ali, naquela confortável sala e sob toda atenção dos enfermeiros, já estou sendo submetido à cura. E não à doença.

Reinaldo Alnei Ew – jornalista

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