Uma luta entre irmãos no Interior de Montenegro

100 Anos. Combate de Vapor Velho resultou de polarização política e uma fraude eleitoral

Com 150 anos, Montenegro está marcada de muitas maneiras na história do Rio Grande do Sul. Neste mês, um episódio de violência “entre irmãos” ocorrido em sua Zona Rural completa 100 anos. O Combate do Vapor Velho (ou Do Cafundó) foi uma escaramuça entre 21 ocorridas na Revolução de 23, onde o sangue de mais de 1.000 gaúchos foi derramado por motivações políticas.

O historiador e professor Eduardo Kauer inicia o relato deste entrechoque de Chimangos com Maragatos justamente pelo aspecto político-partidário envolvido. Em novembro de 1922 houve eleições no Brasil, e aqui Borges de Medeiros tentava reeleição ao quinto mandato como Presidente da Província. Em oposição surgiu o nome do diplomata Joaquim Francisco de Assis Brasil, fortemente ligado às comunidades do campo.

Kauer lembra que na época o voto era aberto e oral, onde o mesário marcava o candidato escolhido, dobrava a cédula e entregava para o eleitor depositar na urna. “Isso dava muita fraude”, aponta. O Ibiá ouviu ainda o advogado Carlos Barreto, que, além de entusiasta da história local, é bisneto de Augusto Dionísio de Azevedo, Maragato que lutou em Vapor Velho.
Barreto assinala que naquele início de século ainda não existia a figura da Justiça Eleitoral, e quem apurava a votação era uma comissão eleitoral nomeada pelo próprio governador em exercício. “Para exemplificar, no Alegrete um eleitor votou cinco vezes, e até os mortos votaram”, relatou o advogado, baseado em pesquisas de historiadores (Fedélis Dalcin Barbosa e Amadeu Weinmann).

Desta forma, os dois entrevistados do Ibiá confirmam que o pleito de 23 teve fraudes, e Kauer recorda que isso foi feito nas atas de urnas levadas a Porto Alegre. O povo foi para aquele pleito com sentimento de mudança, substituído depois por revolta com o resultado, claramente, trapaceado.

O rude da cidade versos o intelectual do campo
Estavam em oposição naquela eleição dois pensamentos antagônicos. Na ‘situação’ o rude Borges de Medeiros, no entanto, defensor da industrialização e substituição do cavalo pelo trem, o que lhe garantiu apoio da cidade, especialmente dos empresários. Barreto recorda que Borges esteve duas vezes em Montenegro. Uma delas foi justamente durante a construção da ferrovia, fundamental ao desenvolvimento do município, e que hoje é ícone histórico.

Ernst Gustav Biehl nasceu a 10 de agosto de 1885, filho de Carl Biehl e Philippine Krug. Cursou só dois anos do primário, mas leu os livros clássicos em alemão e foi pesquisador autodidata. Fotos: Reprodução/ Acervo de Eduardo Kauer

Na oposição estava o fazendeiro, todavia culto, Assis Brasil, que representava a elite ruralista, em aliança com o candidato a Presidente da República, Arthur Bernardes. Kauer comenta que o candidato teria prometido uma escola agrícola em Montenegro, na área entre Santos Reis e Vapor Velho, benefício que por sinal até hoje o município não possui semelhante.

Após o pleito, Assis Brasil esperou em vão que o vitorioso Arthur Bernardes fizesse uma intervenção no Rio Grande do Sul, a exemplo do que fez em outros estados onde simplesmente o vencedor não lhe agradava. Todavia, seu aliado legalizou o quinto governo Borges. Foi destes crimes e manobras que eclodiu a Revolução de 23, com “Borgistas/ Chimangos” e seus lenços brancos e “Assisistas/ Maragatos” e seus lenços vermelhos.

Coronel Hygino Pereira era descrito como “valente libertador e ‘assaltante’ de São Sebastião do Cahy e outras localidades”. Fotos: Reprodução/ Acervo de Eduardo Kauer

Interior da cidade era Maragato
É preciso ter bem presente que a Montenegro do início do Século 20 – e que se estendia até a atual cidade de Poço das Antas – era basicamente rural, justamente setor que concentrava o núcleo de oposição ao reeleito. Para conter essa revolta popular por todo o estado, Borges de Medeiros usou a legalidade da Brigada Militar. Mas recebeu também apoio de uma milícia chamada de “Tropas Provisórias”, formada por civis armados, sem ética e de difícil controle.

Já os Maragatos eram, basicamente, homens do campo. Mas tinham seus heróis “gaudilhos”, como o “coronel” Hygino Pereira. Este, após triunfo no Combate do Morro Pelado, em Taquari, veio se refugiar na casa do aliado montenegrino Ernest Gustav Biehl. Kauer chama a atenção para essa figura, que acabou retratada na história de forma pejorativa. Todavia, Biehl era um agricultor inteligente, com conhecimento autodidata, inclusive para exercer a função de “médico prático”.
A presença da tropa do coronel Hygino (com um soldado ferido) em Vapor Velho foi informada ao então Pelotão de Metralhadoras da BM (hoje 5º BPM), que deslocou à localidade com 70 brigadianos e 30 provisórios. O cerco durou 4 horas, com os Borgistas tendo que avançar em campo aberto, sob a mira de não mais de 20 Assisistas.

O coronel Maragato fugiu e a tropa foi rendida. Biehl foi preso, levado a Porto Alegre para depoimento e liberado. Seu irmão fugiu escondido no trem para Santa Maria, onde recebeu salvo-conduto do Exército, e retornou para Montenegro.
“Eu entendo que quem ganhou foram os Borgistas”, avalia Kauer. Ainda que tenham tomado o campo de batalha, mas seu alvo não tenha sido capturado ou abatido. Carlos Barreto defende que os Maragatos foram vencedores.

Vultos de nossa história

Em 15 de dezembro daquele ano foi assinado o Tratado de Pedras Altas, fazenda de Assis Brasil, selando a paz e mantendo Borges de Medeiros no cargo. Todavia, foi imposta a condição de que não poderia mais se candidatar.
Mas o episódio em Montenegro é cercado de controvérsias e versões, sendo chamado tanto de Combate de Vapor Velho como de Cafundó. Apesar das quatro horas de troca de tiros intensa (cerca de, 30.000 disparados pela Brigada e provisórios – talvez com metralhadora – e 900 pelos Maragatos), segundo Kauer, apenas dois soldados morreram: Pascoal de Lima, 26 anos; e Policarpo de Vargas, 21; ambos por tiro. Já Carlos Barreto relata “dezena de Borgistas abatidos e alguns Maragatos”.

Entre as famílias montenegrinas envolvidas estão ainda sobrenomes Maurer, Fontoura e Rosa. No curta-metragem “Ecos do Cafundó”, que deverá ser rodado na cidade, o diretor Diego Müller se baseia no romance “Bárbaros do Paraíso”, do escritor montenegrino Pedro Stiehl. O que não há dúvida é que a cidade foi palco deste conflito, entrando também desta forma na história do Rio Grande do Sul.

Marcha de 23
Reconstituição histórica do Combate do Vapor Velho, promovida pelo museu Memorial Ao Imigrante. Será uma caminhada de 3 quilômetros para reconstituir a partir das narrativas e mapas os fatos ocorridos no dia 8 de julho de 1923. Logo a seguir os participantes vão se reunir na Capela Cristo Rei para testemunhos ou apresentação de objetos, fotos e documentos da época.

Capela Cristo Rei – Vapor Velho

Data: 8 de julho de 2023 às 9:00.
Local de encontro: Capela Cristo Rei, Vapor Velho (com chuva o encontro será apenas dentro do templo)

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