VALOR das residências localizadas em área de risco tende a zero
As recentes enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul causaram danos materiais e humanos, mas também trouxeram significativos impactos sociais, culturais e para o planejamento das cidades. O mercado imobiliário é fortemente atingido nesse contexto.
Propriedades em áreas afetadas enfrentam uma desvalorização acentuada, enquanto a demanda por imóveis em regiões mais seguras cresce consideravelmente. Imóveis localizados em áreas atingidas pelas enchentes sofreram uma queda abrupta em seu valor de mercado. Silvio Cezar Arend, economista montenegrino, relembra que do ponto de vista econômico, o prejuízo imediato se refere à destruição de lares, mobiliário, pertences pessoais e memórias. Já para empresas, além da destruição do prédio em si, também há a perda de máquinas e equipamentos e de insumos e produtos prontos.
“Imóveis que foram atingidos por uma enchente sofrem uma desvalorização, pois aumenta a dificuldade de encontrar um comprador disposto a correr o risco de ver o imóvel novamente atingido por uma enchente futura, ainda mais considerando que tais eventos se tornaram mais frequentes e com maior intensidade nos últimos anos”, explica. Isso porque, independentemente da intensidade do evento, o mercado entende que são imóveis em área de risco e, portanto, tem valor menor do que aqueles situados em zonas até o momento consideradas seguras. “No limite, imóveis que foram totalmente destruídos, restando somente o terreno com a fundação, não têm mais nenhum valor de mercado”, analisa.
É por isso, que imediatamente, há a necessidade da recuperação de residências e empresas, como limpeza, desinfecção e verificação de danos não aparentes nas edificações, assim como a reconstrução dos imóveis em si. Para ele, a reconstrução não deveria ocorrer no mesmo local, tendo em vista os riscos aumentados de novos eventos de mesma natureza, ou até piores, como vêm acontecendo. “No médio e longo prazo deve ser repensado o uso do espaço urbano, com relocalização de parcela da população, prédios públicos, infraestrutura, etc”. Arend pontua que é cada vez mais claro que o plano diretor e o zoneamento, tanto urbano quanto rural, devem ser revistos, “não mais permitindo a construção de residências em locais suscetíveis a enchentes e/ou deslizamentos”.
A relocalização das áreas residenciais atingidas é, para Arend, a prioridade e o maior desafio a ser enfrentado. “A reconstrução deve ser realizada em local seguro e não suscetível a novos eventos climáticos, pois a vida deve vir em primeiro lugar. As áreas hoje ocupadas por residências devem ter novo destino, seja como áreas de espraiamento das águas, seja como alguma atividade econômica”.
Valor dos imóveis atingidos tende a zero
Arend ressalta que algumas consequências das enchentes são interrupções totais ou parciais de estradas e pontes; rompimento de diques, de tanques de combustíveis; curtos-circuitos; interrupção total ou parcial do fornecimento de água e serviços de saneamento básico, de energia elétrica, gás, comunicação e internet; fechamento de escolas e unidades de saúde, entre outros serviços e infraestruturas afetadas, em maior ou menor grau. Tudo isto cria dificuldades e compromete o fornecimento de serviços básicos para a população. “Neste cenário, sem serviços ofertados, com dificuldades para reconstrução e necessidade de relocalização, o valor das propriedades, especialmente as atingidas pela enchente, tende a zero”.

Atenção ao psicológico
Arend afirma que para além do impacto econômico, é preciso pensar primeiramente no impacto psicológico da população atingida e nas vidas perdidas. “A perda de memórias como fotos, vídeos, objetos de família que passaram por gerações são perdas não recuperáveis e, mais que isso, não são mensuráveis economicamente. Por isto, a necessidade de revisão dos planos diretores, dos zoneamentos urbano e rural e a definição de locais seguros para as residências, bem como com toda a infraestrutura necessária para tanto”, conclui.
“E se vem uma maior? Perdemos tudo de novo?”
Alisson Severo, de 22 anos, é natural de Capela de Santana e, em busca de novas oportunidades, mudou-se para Montenegro em 2022. Antes das recentes cheias, ele residia no bairro Ferroviário, onde a água havia invadido sua casa em pequenas proporções três vezes antes de causar a destruição total na maior inundação da história da região. A busca por um novo imóvel foi imediata, com o foco em evitar áreas de risco. Sua prioridade era encontrar algo pequeno, como uma kitnet ou apartamento, mas a alta demanda elevou os preços consideravelmente. Durante aproximadamente duas semanas, Alisson hospedou-se na casa da família em Capela, aproveitando que sua empresa também foi severamente afetada pela enchente e não pôde retomar as atividades. Com muito esforço, após cerca de três semanas, encontrou um novo local no bairro Rui Barbosa e para lá se mudou com os poucos pertences que conseguiu salvar. “Agora é recomeçar e agradecer que tive a sorte de sair da antiga casa. Não é fácil, mas é necessário, pois fiquei com medo das cheias de setembro, e se vem uma maior? Perdemos tudo de novo?”, questiona.
Alta procura aumenta valores
Juliana Souza, 27, é uma das dezenas de pessoas que, após ser atingida pela enchente, decidiu morar em outro local. Ela, junto do marido e a filha de apenas um ano de idade, era moradora do bairro Centro, próximo ao Colégio Sinodal Progresso, e logo após ser atingida, já iniciou a busca por uma nova residência. Felizmente, a família conseguiu salvar os pets da casa, sendo cinco gatos e três cachorros, mas isso dificultou ainda mais na busca por um novo imóvel. “Procuramos por um bom tempo casas pra alugar, mas acabamos desistindo, pois as que encontrávamos ou não aceitavam pets, ou não tinham pátio fechado ou era um valor muito alto”, conta.
Foram cerca de três semanas em busca, mas sem sucesso. “Íamos voltar para o mesmo lugar onde morávamos, que era casa própria, porém meus avós ofereceram a casa deles que está vazia para gente ficar, até conseguir comprar algo”, explica. O local fica no bairro Ferroviário, também área de risco, mas a casa está situada no segundo piso, onde a água não chega.
A família estipulou um prazo até o final do ano para conseguir adquirir outro local. “Perdemos quase todos os móveis. O pouco que conseguimos recuperar ainda está sendo organizado e limpo, com o mau tempo dos últimos dias fica difícil secar as coisas”.
Valorização de áreas seguras
Em Montenegro, a tragédia levou muitos moradores a reconsiderarem suas escolhas de moradia. Karl Heinz Kindel, especialista no mercado imobiliário local, comentou sobre as transformações e tendências observadas após o desastre natural. Após a tragédia, houve uma tendência natural dos moradores em buscar áreas mais altas e menos propensas a enchentes. “Esse comportamento é uma resposta imediata ao instinto de sobrevivência”, explica Kindel. Com isso, a demanda por imóveis em zonas seguras aumentou, gerando especulação e elevação temporária dos preços. No entanto, Kindel acredita que essa valorização é passageira e que, com o tempo, a oferta e a procura ajustarão os valores no mercado.
Mudança na demanda por bairros
Logo após a enchente de maio, a procura por imóveis em áreas mais elevadas aumentou consideravelmente. Bairros no lado oeste e leste do Morro São João, além de áreas afastadas como a grande Santo Antônio, se tornaram mais atrativas. “Observamos uma busca imediata por qualquer imóvel que acomodasse o número de pessoas da família de acordo com o orçamento disponível”, afirma. Apesar da preferência inicial por áreas fora de risco, muitos moradores tendem a permanecer nas regiões em que vivem há mais tempo, como a região central e a grande Timbaúva. Além disso, o surgimento de novos loteamentos em áreas como Pareci Novo atraiu interessados devido aos preços mais acessíveis e à qualidade de vida oferecida.

Perspectiva para os bairros atingidos
Contrariando previsões de abandono dos bairros mais afetados, Kindel argumenta que a infraestrutura já existente e os custos de implementação de soluções para amenizar os impactos das enchentes tornam a permanência mais viável. Ele acredita que, em comparação com outras cidades mais gravemente afetadas, Montenegro pode encontrar soluções menos dramáticas do que o abandono dos bairros afetados.
“Qualquer previsão no sentido que estes bairros devam ou que serão abandonados é pura e absoluta especulação”, destaca. Ele ressalta que além das construções existentes, não devemos esquecer da infraestrutura urbana instalada (ruas, calçamentos, tubulação de esgoto pluvial, iluminação pública), praças, escolas e postos de saúde. “Acredito que seja muito mais barato implementar buscar e executar soluções no sentido de amenizar os impactos das enchentes, do que simplesmente estimular o abandono destes bairros”, acrescenta.
Impacto no mercado imobiliário
A tendência de migração para áreas seguras tem impacto direto no mercado imobiliário. Contudo, Kindel destaca que muitas pessoas retornarão às suas residências ou negócios, mesmo após terem sido afetadas pelas enchentes repetidas vezes. Ele exemplifica com a própria imobiliária, que foi atingida duas vezes, mas optou por permanecer devido ao fluxo de pessoas e ao investimento realizado. “Acreditamos que, apesar das tragédias, o mercado imobiliário se acomodará gradualmente. Muitas pessoas retornarão às suas casas e negócios, e novas locações já estão sendo contratadas nas áreas afetadas”. Ele pontua que o “retorno” também se deve à falta de abundância de imóveis para locação e venda. “É muito provável que as pessoas não consigam encontrar imóveis que se encaixem em seu orçamento para a mudança”.
Solidariedade e resiliência
A resposta da comunidade às enchentes foi marcada por um espírito de solidariedade e resiliência. Voluntários, ONGs e o setor privado mobilizaram-se rapidamente para fornecer assistência. Kindel ressalta a importância das ações para a recuperação e a necessidade de medidas preventivas para minimizar os impactos de futuros desastres naturais. “Apesar da devastação, a resposta da comunidade e a solidariedade mostrada foram inspiradoras. Pessoas se mobilizaram rapidamente para fornecer assistência. Essa resiliência e espírito comunitário são fundamentais para a recuperação e reconstrução”, finaliza.