Maior estiagem dos últimos anos deixa suas marcas ao longo dos municípios cortados pelo Caí
Há 71 anos, Helena Jacomina Franz Pellenz acompanha o nível do Rio Caí, mas, oficialmente, faz a medição há cerca de 35. Ela cresceu vendo o nível d’água subir e descer diariamente, experiência que permite conhecer bem os cursos e particularidades do rio. Antes de Helena, seu irmão fazia a medição para o Serviço Geológico do Brasil (CPRM). E antes dele, o pai e o avô foram os responsáveis pelos dados. “Nunca tinha visto chegar nesse nível”, garante a idosa, que desde a infância é habituada com as águas calmas que cortam a localidade de Nova Palmira, já em Caxias do Sul, há quatro quilômetros da divisa com Vale Real.
É dona Helena quem coleta os dados na parte mais alta do Vale do Caí, informando sobre cheias e estiagens, além de coletar os dados da chuva na região. Seus cadernos com números são um verdadeiro registro histórico do comportamento do rio no início do Vale da Felicidade. Ela já viu o Caí chegar a incríveis 10,40 metros, mais de um metro acima da última régua que mede a enchente na área, que tem 9m. “Eu fiz uma marca e os engenheiros [do CPRM] vieram medir”, recorda. Mas desta vez seus dados são preocupantes: o nível do rio chegou a menos 16 centímetros, quando o mais baixo que ela já havia visto eram 50 centímetros acima de zero. Esse registro é coletado em uma área em que a largura do leito é estimada em 30 metros. “Essa régua [com níveis abaixo de zero] foi colocada há pouco tempo. Antes não tinha”, revela. Agora, a régua negativa tem sido muito útil. Na última semana, a nível variou entre -16cm e -11cm. “Pode variar da medição feita de manhã pra que eu faço à tarde. Mas nunca varia muito de uma vez”, explica, sobre o comportamento do Caí próximo à sua propriedade.
O cenário visto no sopé da Serra se repete – em maior ou menor grau – em toda a extensão do Rio Caí. A estimativa do Departamento de Gestão de Recursos Hídricos e Saneamento da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, é de um nível 20 a 25% menor de água no rio em seu trecho baixo.
Em Bom Princípio, há pouco mais de 20 quilômetros da casa de Helena, embora o nível não pareça ter sido tão afetado, é possível chegar a lugares antes não acessados às margens do Caí. Em partes mais rasas é possível atravessar o leito quase sem molhar as pernas. Grande parte da estrutura debaixo da ponte da ERS-122 fica visível aos visitantes, assim como as pedras que compõem o curso d’água nesta área. Situação semelhante ocorre em São Sebastião do Caí, nas pontes do Matiel – ou pontes estreitas. O leito raso deste ponto está ainda mais seco, causando impacto a quem observa as águas. Na régua existente no município outra constatação preocupante: embora seja bastante largo, o nível está quase pela metade. Dos 2,40 metros habituais, nos últimos dias a profundidade tem sido, em média, de 1,28 m.
E se em Montenegro, visualmente, a situação não é tão impactante quanto nas comunidades vizinhas, raízes de árvores e galhos expostas ao longo de seu curso dão a dimensão do sofrimento imposto pela estiagem. Em Pareci Novo, o fundo do leito está visível nos pontos mais rasos do “Senhor do Vale”.
Seca às margens do Rio
Onde havia água, agora o pó domina. E as várzeas verdes estão tomadas por um marrom insosso, que denuncia que a chuva já não chega com força há quase meio ano. As imagens das áreas de extravaso assustam quem convive ao longo da bacia. “Olha ali, bambuzal seco. Quando é que você viu pé de bambu secar?”, questionou Adriano Maldaner, fiscal da prefeitura de Bom Princípio, enquanto seguia até um dos pontos do Caí no município. “Isso aqui é área de várzea. Normalmente é um banhado, em que os animais atolam. Não tinha que ter pó”, afirma preocupado, à medida que a paisagem poeirenta se revelava pela estrada do interior. Os topos das árvores secos no horizonte reiteram uma natureza castigada pela ausência da chuva.
A paisagem se repete em todos os municípios por onde o Caí serpenteia. “Se olhar em volta, os topos dos morros estão todos secos. A mata nas margens do rio está seca”, observa Geberson Christian Barth, coordenador da Defesa Civil de Vale Real.
O biólogo Rafael Altenhofen, presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Caí, o Comitê Caí, reitera que é possível verificar o impacto da estiagem ao longo da bacia do Caí, e é categórico. “Não há vida sem água. Algumas espécies são mais adaptadas a menor disponibilidade hídrica e outras só vivem em abundância de água”. Segundo ele, há relatos de atropelamentos de animais silvestres, mesmo com a redução da circulação de veículos. “Um provável motivo é a necessidade de deslocamento maior em busca de água e alimentos (que também escasseiam em função da seca)”. Além da falta de oxigenação pelo baixo volume de água (e consequente morte de peixes), a estiagem contribui para que, na prática, o índice de poluição fique maior. “Em uma situação onde tenhamos metade do volume de água disponível (e isso está ocorrendo em vários locais na bacia) teremos o dobro da concentração de poluentes dissolvidos na água”, explica.
Toda a bacia precisa de atenção
Não é somente o Rio Caí que preocupa. Ao longo da bacia, outros curso de água de menor volume são alvos de preocupação, de acordo com o biólogo Rafael Altenhofen, presidente do Comitê Caí. “Embora a calha principal do Rio Caí ainda apresente razoável volume, o mesmo não se pode dizer de muitos pequenos cursos d´água que fazem parte da bacia, que estão secando ou já secaram totalmente”. Há espécies de peixes, moluscos, crustáceos e plantas que vivem apenas nesses locais e já correm risco com a estiagem, de acordo com ele.
A situação de cada curso de água depende de fatores como a geografia, geologia, vegetação, nível do lençol freático e usos da água. “Assim, pequenos corpos hídricos em meio a áreas florestadas, com baixa declividade, solo argiloso e de base arenítica (que retém água, como uma esponja) estarão em situação muito melhor que arroios e locais íngremes, como menos vegetação e de base basáltica (como nos trechos superior ou médio da bacia)”, exemplifica Altenhofen.
O Vale em emergência
Quase todos os municípios do Vale do Caí já decretaram emergência devido aos efeitos da estiagem. Em Vale Real, por exemplo, foi estipulada multa de R$ 300,00 para quem for flagrado desperdiçando água. Entre as atividades proibidas está lavar calçadas, telhados, casas e veículos, além de regar gramados e jardins. “Foi uma ação para minimizar um possível desastre maior, uma vez que o município é abastecido por 12 poços artesianos e as bombas estão trabalhando sem parar”, afirma o coordenador da Defesa Civil do Município.
Em São Pedro da Serra há Decreto de Racionamento, prevendo medidas de economia. O município também está desligando o sistema de bombeamento de água das 22h às 6h, para preservar os poços artesianos.
Em diferentes cidades já falta água até para beber, sobretudo em locais onde o abastecimento é feito através de poços. Ainda em março, o Comitê Caí recebeu relato de uma nascente que havia secado, em uma propriedade de Montenegro, em que a família já cultivava há 90 anos e isso nunca havia acontecido antes. Isso também já foi registrado em comunidades da Feliz, onde famílias tiveram seus poços secados. “A gente acredita que, se essa situação continuar, vai se agravar cada vez mais, e teremos mais famílias nessa situação”, afirma a secretária de agricultura da Feliz, Everlin Kremer.
Produtores castigados, economia em dificuldade
“O primeiro impacto é no produtor rural. Ele vai sentir muito e imediatamente”, afirma o secretário de desenvolvimento rural de Montenegro, Renato Caiaffo da Rocha. “Mas depois, vai sentir o profissional que iria ajudar na colheita e não vai mais ser contratado. Ele vem pra cidade, mas a economia está mais devagar, então gera desemprego”, avalia. Em longo prazo, a projeção é queda na arrecadação do Município e no orçamento municipal. O consumidor também já começou a sentir a alta nos valores de frutas e hortaliças.
Essa situação é comum em todo o Vale. A estimativa é de, ao menos, 50% de perda na produção rural devido à estiagem. Caiaffo conta que já teve produtor relatando perda de cerca de 70%. Somente em Montenegro, o impacto já ultrapassa R$ 30 milhões.
Outro dado alarmante é que perdas não deverão ocorrer somente esse ano. “As mudas entrariam em período de florada, mas elas não conseguem. Estão tentando sobreviver”, conta o secretário de agricultura de Pareci Novo, Fábio Schneider. Mas nem mesmo essa tentativa da natureza foi capaz de salvar parte da produção. “Em muitos locais as plantas já morreram. Os produtores estão tentando salvar”, relata. E essa é a realidade pela região.
Em Bom Princípio as hortaliças já não foram replantadas. “Seria jogar dinheiro fora, porque mesmo que o produtor conseguisse plantar, não conseguiria manter a produção”, explica Adriano Maldaner, fiscal da prefeitura.
“Além das perdas que já tiveram, os produtores estão adiando as culturas, porque não têm água em seus reservatórios”, explica a secretária de agricultura da Feliz, Everlin Kremer. “O produtor não consegue produzir porque não chove e não tem como reabastecer os reservatórios”. O município produz principalmente milho, frutíferas e olerícolas, “Tudo isso ficou prejudicado”.
Poderia ser ainda pior
O Departamento de Gestão de Recursos Hídricos e Saneamento da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura aponta que a atual estiagem supera a de 2011/2012 e se compara, na bacia do Rio Caí, à de 2004. Diferentes percepções são vistas, no entanto, em pontos distintos do Vale.
O extensionista da Emater de São Sebastião do Caí, Luiz Maurício Finkler é categórico: “Essa é a maior estiagem, em período de seca, que passamos em muitos anos”. Já o coordenador da Defesa Civil de Vale Real, Geberson Christian Barth, e o secretário de desenvolvimento rural de Montenegro, Renato Caiaffo da Rocha, concordam em dizer que nunca haviam presenciado situação tão severa.
Finkler revela que, em sua opinião, a situação desse ano poderia ser muito pior, se não houvesse união dos produtores do Vale do Caí há mais de 30 anos, após uma grande seca ocorrida em 1985. “Naquela época, a irrigação era feita por aspersão. A água era tirada do Rio Caí”, recorda ele, que já está na Emater do Caí há cerca de 40 anos. Após o episódio de 1985, segundo relembra Finkler, houve um movimento para que o sistema de irrigação nas produções do Vale fosse alterado para gotejamento, que, segundo a avaliação do extensionista rural, economiza cerca de 95% da água em relação à aspersão. “Foi uma luta de toda a Emater da região para que houvesse essa mudança”, recorda.
Segundo o presidente do Comitê Caí, biólogo Rafael Altenhofen, hoje, a irrigação das culturas agrícolas (como exceção ao arroz que usa 8,1 %) responde por 2,2 % da demanda de água da bacia, enquanto que a criação animal apenas 1,5 %. Já o abastecimento público demanda 6,4% da bacia, a indústria 19,4% e a transposição 62,4 %. Ele ressalta, ainda, que a bacia do Rio Caí ocupa uma posição privilegiada no tipo de solo e relevo em seu curso, em relação a outras. Isso também contribui para que o Caí esteja em uma situação mais confortável diante da estiagem.
Esperança de chuva
A expectativa é de que as chuvas comecem a normalizar a estiagem vivida pela região. Nos últimos meses, as precipitações ficaram em torno de 13,9 milímetros em março, e 19 milímetros em abril; muito abaixo da média para o período. Essa semana, o município dentro da Bacia Caí em que mais choveu, Caxias do Sul, apresentou 12,4 mm, sendo que nenhum outro teve chuvas acima de 1 mm. Montenegro, por exemplo, não passou dessa média. Há previsão de mais alguns eventos de chuva isolada na região, com um bom volume, de acordo com o Climatempo, porém, não o necessário, ainda, para reverter o cenário de estiagem.