O que você faria se recebesse um envelope direcionado a você, mas com a letra, o cheiro e o jeito que somente uma pessoa tem. Mas essa pessoa já morreu há 10 anos. É assim que começa Quase Memória, do jornalista Carlos Heitor Cony. A obra transita entre o romance, a memória e a biografia sem, no entanto, ter todas as características de nenhum desses gêneros literários.
A partir desse pacote, fechado com um nó que somente seu pai sabia fazer, e com uma perfeição que lhe era característica, Carlos Heitor Cony começa a rememorar a vida do pai. As lembranças são claras ao narrador, assim como é claro em sua memória o exagero do pai. Isso faz com que, muitas vezes, ele mesmo duvide da história que está contando, em detalhes, fazendo o leitor viajar nesse mundo imaginário.
A descrição das histórias é detalhada a tal modo que é quase como se o leitor estivesse lá, no início do século XX, sendo expectador privilegiado das façanhas do também jornalista Ernesto Cony Filho, o pai do Carlos Heitor. Caracterizado pelo próprio filho como um homem de gestos muito exagerados, ele sempre dizia, antes de dormir: “amanhã farei grandes coisas”. Essas grandes coisas podiam ser uma viagem à Itália – spoiler – que nunca aconteceu, mas foi descrita em detalhes para os amigos e pessoas próximas de Ernesto, ou um balão de festa junina.
Os balões, aliás, eram sua marca registrada. Feitos com papel especial, comprado em resmas sempre na mesma loja, os balões de Cony pai tomavam proporções homéricas. O filho, sua plateia mais fiel e encantada, ajudava na confecção dos balões, desde os menores até o maior de todos. O rei dos balões. A cola devia ser sempre cola de trigo, já que as compradas não teriam a mesma aderência e durabilidade, segundo o pai.
O cheiro do embrulho lembra as mangas, que o pai roubava no cemitério. E lembra também a destreza com que ele se infiltrava nos lugares para estar sempre próximo do filho, dando sinal de sua presença ou colocando, sorrateiramente, um sanduíche no bolso da batina, quando este estudava no seminário. Em uma das passagens, no velório do cardeal, o pai surge “magicamente” entre os túmulos, durante o momento mais solene, carregando um prato de botequim enrolado em guardanapo, para o filho.
As histórias do jornalista/professor/assessor/vendedor de rádios se misturam também com a história do Brasil. Ele desempenha sua função durante boa parte do século XX e passa por grandes momentos, como a ascensão de Vargas ao poder, crise econômica da década de 1930, tomada do poder e invasão do jornal pelos militares, mudança da capital Federal do Rio de Janeiro para Brasília e a mudança nas relações da imprensa com o poder. Tudo isso vai aparecendo no livro de forma sutil, como pano de fundo às memórias dos grandes feitos de Ernesto Cony.
O livro é leve, divertido e sagaz. Uma ode à figura paterna, que gera identificação imediata do leitor. Ao final das contas, o pai, pintado como um herói pelo filho, não é nada mais do que um brasileiro comum, que precisa se virar quando perde o emprego, e vai vender rádios. Um brasileiro que faz uma peregrinação até outra em busca da cura para um problema de saúde, quando soube dos milagres de padre Antônio, o Taumaturgo de Urucânia. E um brasileiro que faz grandes coisas para sobreviver, diariamente, sempre contando com o seu jeitinho especial de resolver os problemas dos cotidiano.