Foi com muita alegria que me caiu nas mãos o novo livro organizado pelo escritor e professor de Literatura Rubem Penz: “Caio em mim”. Uma coletânea de crônicas de sua oficina em que o tema era Caio Fernando Abreu, um dos maiores escritores gaúchos e brasileiros que faleceu em 1996. Caio Fernando, homossexual assumido, escreveu contos antológicos que vasculham a alma do ser humano e influenciou muitos escritores posteriores. Eu, inclusive.
Pois Rubem Penz mirou como tema a Literatura maiúscula de Caio. E neste processo tivemos dois montenegrinos participantes. Patrícia Franz, como escritora, e Gerson Kauer, como capista. E vou lhes dizer: ficou um luxo!
Começando pela capa, de uma sensibilidade ímpar. Nunca se encontra menos nos trabalhos deste artista múltiplo que é Gerson Kauer. O minimalismo, o detalhe que grita, o frágil ponto de luz ao longe que nos derrama em nós mesmos. A capa é uma poesia! Como uma boa crônica.
Depois, as crônicas: Na “Ciúme, fera”, a montenegrina Patrícia Franz dá uma aula sobre a contradição humana. “Dormir com os pés destapados, as janelas abertas, o frio e o ódio entrando”. Ah, o ciúme! E finda: “O ciúme é meu animal de estimação. (…) uma fera dormindo aos meus pés, enquanto eu perco o sono pensando nela”. Né mesmo?
O texto “Presenças” de Camila Z. (pág. 29) conta a saga de J.O., um cara que morreu. Frases como: “Sua esposa o deixou partir”, “Aquela boca de vô mexendo ainda” “O silêncio de usar fraldas, de morrer aos poucos”, tornam a crônica lúgubre, mas, ao mesmo tempo, instigante. Coisas que a morte tem a dizer “um nada que ninguém entende”. “Essa presença que não deixa a casa (…) aquilo tudo que continua a dizer.”
A morte é sempre um grande tema. E esta crônica diz muito.
Numa sequência aleatória, já que não tem como falar de todas as crônicas aqui, temos “Carta a um Gato” de Edgar Aristimunho, muito boa. “Trocam-se todas as dúvidas do mundo por uma certeza”, de André Hofmeister em que debocha, claro, das certezas. A crônica “Nenhum tempo do mundo” em que Giancarlo Carvalho desembesta o mundinho das redes sociais com seus emotions, fake news, a busca desesperada por likes, enfim o mundo vazio da irrealidade virtual em que pretendemos, inutilmente, preencher o mundo vazio da realidade. Um dos melhores textos do livro.
E temos sempre mais de todos. Cada autor comparece com cinco crônicas. Uma beleza. Os textos, inspirados nos contos de Caio Fernando Abreu, fazem jus ao temperamento literário do escritor. Uma releitura que talvez o orgulhasse. A nós, leitores, pelo menos, orgulha.
De minha parte, o livro “Caio em mim” sedimentou certezas e descortinou novidades muito interessantes. A novidade principal, Camila Z. Todas as suas crônicas são ótimas. As certezas, as que eu carrego de há muito: os montenegrinos Patrícia Franz e Gerson Kauer. Só qualidade!
“Caio em mim” é um belo relembrar de um escritor, de um tempo, de uma geração de novos escritores que estão atentos ao hoje, mas não fecham os olhos ao passado. Caio Fernando Abreu tem muito a ensinar. Aprender com ele é uma doçura. Replicar o aprendizado já é sim, um novo sentimento. Mesmo que seja sempre e sempre, o velho verbo sentir. Aquele sentimento sempre faz a gente cair em si.