O compositor Noca da Portela fez uma homenagem à música: tudo que a vida me deu eu devo ao samba. Já o poeta Mario Quintana disse que tudo que lhe acontecera e acontecia de bom era graças à poesia. E nós, reles mortais sem talento, que não fazemos mais nada do que o trivial do dia a dia, a que devemos tudo que a vida nos dá?
Ao seio da mulher amada? Ao trabalho? À saúde? À sorte? À alegria contagiante do riso? Às provações da tristeza? À amargura da solidão? Ao retorno eterno a si mesmo ao que cada um de nós é obrigado todos os dias, ou pelo remorso ou pelo arrependimento?
A falta de resposta que nos engasga ante estas perguntas mostra nossa incapacidade de compreender e apreender a profusão de sentimentos, dúvidas e incertezas que movem as rédeas de uma vida. Por não sermos artificiais, podemos transformar em beleza as agruras dos mais duros sofrimentos. Para alguns, isso responderá a que devemos tudo que a vida nos dá: à nossa capacidade de nos superarmos e nos construirmos depois das rupturas.
Para outros, devemos às forças míticas e não humanas. Um embate que já dura milênios e promete durar alguns mais.
Como insinua o moçambicano Mia Couto num poema: Não aprenderei a decepar flores para um dia ter um jardim. O que passa enfim, por uma decisão, por uma vontade. Se um dia quero ter um jardim, preciso necessariamente iniciar um movimento em mim que pare de decepar flores e passe a plantá-las. O que a vida nos dá pode ser, pelo menos em parte, aquilo que decidimos querer dela. Em parte, pelo menos, pode ser escolha.
Tornar-se aquilo que aparentemente a vida não tinha a menor possibilidade de oferecer é o desafio. Talvez seja isso que a vida nos dá: um desafio. O imponderável está no nosso caminho todos os dias. A sobrevivência no mais das vezes é premente e necessária e sobrepuja vontades e sonhos. Ganhar o pão de cada dia antecede quaisquer outros desafios. Mas há aquele rebelde que, mesmo sob a tortura das adversidades, erguerá um punho solitário aos céus e dirá entredentes: o destino, esse destino, não me vergará!
Todo ser humano é escravo de suas inquietudes. Tudo que a vida lhe dá depende da maneira como as escuta. Se lhes dá ouvidos ou as ensurdece com seus lamentos. Quem gritar mais alto, inquietude ou lamento, a vida ouvirá.
Escolher entre as diversas bandejas que a vida nos oferece não é, contudo, uma tarefa fácil. Podemos escolher plantar jardins ou decepar flores. Podemos escolher ver a poesia das coisas, das pessoas; podemos ouvir a música que há em tudo, em todos, ou podemos optar pelo ódio, pelo preconceito, pela dissolução da civilidade. Em cada um dos casos, a vida nos dará algo em troca. Teremos a sensação de que ela agiu sozinha, de que somos devedores dela. Mas, muitas vezes, aquilo que a vida fez de nós é só um troco, um revide, um retorno.
A vida é só um finito caminhar entre duas fragilidades. Mas quanta doçura e quanto fel ela nos dá entre o seu princípio e seu fim sem sabermos por quê! Ou sabemos e temos vergonha, medo de admitir? Quem de nós grita para seu próprio coração: o destino não me vergará?